Existe um lado do cinema americano que, por diversos motivos, sempre dividiu opiniões: o dos chamados schlock films, ou filmes B. Nos anos 1980, eles mesclavam o potencial de alcance midiático dos blockbusters e a qualidade de produção dos exploitation. O objetivo era se dar bem nas bilheterias, com o menor orçamento possível. Neste contexto, a turma da Geração X foi apresentada a uma enxurrada de clássicos-podreira que dominavam as sessões televisivas e as prateleiras das locadoras, com as figuras de Chuck Norris, Charles Bronson, Jean-Claude Van Damme, Sylvester Stallone, Dolph Lundgren, entre outros.
Braddock, Ninja – A Máquina Assassina, As Minas do Rei Salomão, Comando Delta, Falcão – O Campeão dos Campeões, O Grande Dragão Branco, Mestres do Universo, Stallone Cobra, Cyborg – O Dragão do Futuro. Todos estes possuem algo em comum: foram produzidos e distribuídos pela Cannon Films, estúdio criado pelos primos israelenses Menahem Golan e Yoram Globus, cuja polêmica história envolve brigas de bastidores, projetos mal sucedidos, suor, lágrimas e, por incrível que pareça, diversão. A louca jornada rendeu dois documentários lançados em 2014 – Electric Boogaloo: The Wild, Untold Story of Cannon Films, de Mark Hartley, e The Go-Go Boys: The Inside Story of Cannon Films, de Hilla Medalia.
http://vimeo.com/107973282
Ambos contam com materiais de arquivo, depoimentos reveladores, tom jocoso, e dividem participações de artistas envolvidos nos trabalhos da Cannon. Electric Boogaloo parece colocar menos panos quentes e contar umas verdades. Em The Go-Go Boys, vemos artistas que cultuam a filmografia do estúdio e o próprio Golan dando as caras – sinais de ser mais comedido e contemplativo, como uma biografia autorizada.
Golan e Globus nasceram na cidade de Tiberíades, hoje território de Israel, quando ainda era Palestina – e um dia já foi Galileia. Mesmo mirando os EUA desde o início, entre os anos 1960 e 1970, atuavam também no polo cinematográfico de sua terra natal. Globus como produtor-executivo, Golan como produtor/realizador. Ex-piloto da força aérea de Israel, Golan entrou no mercado de filmes B por influência de Roger Corman, com quem iniciou como assistente de direção.
Ao curso dos anos 1980, numa combinação de charlatanismo e ostensividade como estratégias de propaganda, a Cannon teve a ambição de ser grande, mesmo obtendo menos altos do que baixos. Perderam muito, apostaram ainda mais. Os trailers, de tão apelativos, chegavam a disparar chavões da agenda estadunidense no inconsciente dos espectadores, sem dó nem piedade:
“O inimigo não liga para quem se machuca, nem o quão jovem, inocente ou indefeso é. (…) Uma nova era de terror, que requer um novo tipo de guerreiro. Comando de Elite Antiterrorista da América: empenhada em destruir os inimigos da liberdade. Porque os Estados Unidos são mais do que orgulho, mais do que honra, mais do que justiça. Porque eles estão lutando para salvar vidas americanas!”
A citação acima, tão sutil quanto um cowboy montado numa bomba atômica, narrada no trailer de Comando Delta (dirigido por Golan), soa óbvia nos dias de hoje. Algo como os argumentos de Bush para a campanha antiterror pós-11 de Setembro, não? Não a toa, a distribuidora brasileira que lançava os carros-chefe da Cannon em VHS chamava-se América Vídeo – com vinhetas que pipocavam os desenhos e cores da bandeira ianque na tela da TV, além de um slogan supimpa: “Nossos filmes explodem como dinamite!”
Mas nem tudo foi pastiche na história do estúdio, que também lançou sucessos de crítica como Expresso para o Inferno, Gente Diferente (ambos de Andrei Konchalovsky), Powaqqatsi (de Godfrey Reggio), Amantes (de John Cassavettes), O Ataque (vencedor do Oscar de Filme Estrangeiro em 1987) e Barfly – Condenados Pelo Vício (que, por sua vez, contrariou as expectativas do ilustre semi-autobiografado, Charles Bukowski, o ranzinza mais amado deste mundo).
Na virada para a década seguinte, ao comprar direitos da Marvel, quase produziu sua versão de Homem-Aranha. Porém, após uma adaptação parodiando Capitão América e um punhado de pérolas enlatadas (do naipe de Lambada – A Dança Proibida e American Cyborg – Exterminador de Aço), em parcerias que atolaram os negócios dos Golan-Globus, faliu em meados de 1993. Golan seguiu na produção e direção de filmes de baixo orçamento por mais 15 anos, e faleceu no último mês de agosto. Globus também seguiu como executivo, e hoje é um dos donos da Globus Max, que inclui a maior rede de salas de cinema em Israel. A experiência da Cannon representa o último vestígio de inocência no tino dos produtores executivos de Hollywood, hoje rigorosamente atrelados a fórmulas econômicas multiplataformas. Tempos onde a audácia do retorno financeiro certo vai muito além da loteria das barganhas e blefes.
“The name of the game is to do, not just bla bla bla, bla bla bla… talk about it.”
Electric Boobaloo, exibido no Festival de Toronto, e The Go-Go Boys, exibido no Festival de Cannes e no Festival do Rio, ainda não têm data para chegar em circuito.