Numa contínua onda de subversão, este que vos escreve volta a apropriar-se de uma coluna evidentemente mensal para abordar um período bimestral. Não pense que é por mal, no entanto: estou apenas sabotando nosso editor Tullio Dias diante de uma intensidade menor de filmes vistos que está – infelizmente e por variados motivos – marcando este ano de 2016, ampliar o período de abrangência gera um conteúdo mais coerente, interessante; assim sendo, vamos aos longas-metragens conferidos em março e abril:
21- Page One: Inside The New York Times [visto em 08 de março, no PC]
David Carr é um sujeito que deveria ser fiel e urgentemente seguido pelo “inovador” jornalismo contemporâneo. ★★★★
22- O Mercado de Notícias [visto em 10 de março, em projeção]
O paralelo entre o texto de Ben Jonson encenado e as posições de um grupo de jornalistas brasileiros de altíssimo nível – Bob Fernandes, Mino Carta, Cristiana Lôbo, Janio de Freitas, entre outros – sobre a perspectiva atual do ofício escancara contundentemente o óbvio: os tempos mudam, mas a lógica está condenada à repetição. ★★★★
23- Cães de Aluguel [visto em 11 de março, no Netflix]
Em seu primeiro projeto, Quentin Tarantino já deixava explícito como seria seu Cinema. Ainda que eu prefira o realizador em abordagens mais aprofundadas, o recado é claro e divertido. ★★★½
24- Todos os Homens do Presidente [visto em 12 de março, em blu-ray]
Atual como nunca antes. ★★★½
25- A Entrega [visto em 12 de março, no Telecine Pipoca]
Definitivamente uma surpresa, sustentada por um clima soturno e três ótimas intepretações – Hardy, Gandolfini e Rapace. ★★★★
26- Rain Man [visto em 14 de março, em blu-ray]
Dois anos passados da primeira visita, segue sendo um road movie deliciosamente equilibrado entre a inocência do conhecer e o vigor do reconhecer. ★★★★★
27- Frost/Nixon [visto em 15 de março, no PC]
Embora não seja um relato histórico dos mais fiéis ou confiáveis, Frost/Nixon é inusitadamente, afinal, jornalístico: pauta-se na verossimilhança da construção dos processos de preparação da entrevista, expõe a necessidade de um caráter combativo para a execução da mesma – Frost exerce o jornalismo de fato investigativo apenas quando confrontado -, e compreende perfeitamente o quanto a construção visual é significativa. ★★★★
28- McFarland dos EUA [visto em 19 de março, no Telecine Pipoca]
Ter “USA” grafado no título diz bem a que veio esta produção da Disney: embora pudesse ser só mais um filme-família inofensivo – como é, em alguns momentos -, prefere reforçar a lógica estadunidense de que a chegada de um “elemento novo americano” no comando de seus “povos subordinados” – sejam negros ou latinos – é a ferramenta necessária para guiá-los ao caminho das glórias. ★★
29- Casa Grande [visto em 20 de março, no Telecine Premium]
Junto de O Som ao Redor e Que Horas Ela Volta?, forma uma sessão tripla fundamental acerca da conjuntura social atual brasileira. ★★★★
30- A Condenação [visto em 22 de março, no Netflix]
Aliar as duas belas atuações principais – Hilary Swank e Sam Rockwell – à trama interessante e atual – condenação por argumento ad hominem; uso de DNA para apuração em acusação – poderia render um filme muito melhor caso este focasse com mais firmeza neste segundo fator e em sua importância social. ★★★
31- Prelúdio de uma Guerra [visto em 23 de março, em DVD]
Vale a pena exclusivamente para conhecer melhor um grande exemplo do Cinema-propaganda norte-americano. Uma pena que estejamos avaliando Cinema, e não propaganda. ★★
32- Pequena Miss Sunshine [visto em 25 de março, no Telecine Touch]
Uma revisão que tornou o título ainda mais especial. Sutil e sublime. Melancólico e delicioso. ★★★★★
33- EdTV [visto em 26 de março, em DVD]
Embora não desenvolva seus conflitos com tanta maturidade ou sensibilidade quanto O Show de Truman – e a comparação, ainda que desagradável, é de fato inevitável -, consegue construir uma crítica com autenticidade. ★★★
34- O Diabo Mora Aqui [visto em 28 de março, no cinema]
Dante Vescio e Rodrigo Gasparini realizaram, nos esforços e na vontade, um filme de horror com sangue puramente brasileiro – em todos os sentidos da expressão. A partir de uma estrutura consolidada pelo Cinema estadunidense, a trama claustrofóbico-demoníaca apropria-se de uma deliciosa junção entre uma narrativa clássica de possessão, lendas urbanas nacionais obscuras e o resgate histórico do período de escravidão – este, um terror real – para evidenciar a abundância de nossa cultura que segue predominantemente inexplorada pela sétima Arte – especialmente tratando-se de um filme de gênero. Estreia nacionalmente em julho. ★★★½
35- Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio [visto em 28 de março, no Netflix]
Embora seja obviamente intencional, acho a decisão de misturar o clima cômico com a construção de uma atmosfera de horror extremamente arriscada, o que prejudicou seriamente meu envolvimento com a obra consolidadora de Sam Raimi. ★★½
36- Zoom [visto em 29 de março, no cinema]
“O risco tomado e o estranhamento provocado por este comprovam que Pedro Morelli tinha absoluta noção do significado de sua obra: histórias que crescem além de seus próprios autores, transcendem suas próprias linguagens.”, leia meu texto na íntegra. ★★★★
37- Invasão a Londres [visto em 09 de abril, no cinema]
Se o original conseguia funcionar muito bem apesar das patriotadas e breguices envolvidas, sua continuação não é capaz de nos entregar muito além delas. ★★
38- Eleição [visto em 11 de abril, na Fox]
Em revisão oportuna, as conclusões a respeito de como um cidadão é integralmente julgado por apenas um ato nunca estiveram tão atuais, mas a sacada mais genial de Alexander Payne está evidente na capa: a escalação de Matthew Broderick. Sarcasmo puro. ★★★★★
39- Capitalismo: Uma História de Amor [visto em 13 de abril, em DVD]
“Eu lembro de ter pensado durante o furacão Katrina: ‘Por que são sempre os pobres que têm que sofrer a desgraça? Por que não é Bernie Madoff que está gritando por ajuda? Ou o presidente do Citibank? Ou os caras do fundo hedge da Goldman Sachs? Ou o CEO da AIG?’
Nunca são esses caras, não é? São sempre aqueles que nunca recebem a fatia do bolo, porque esses homens tomaram tudo e os deixaram sem nada, abandonados à morte.
Eu me recuso a viver num país assim – e eu não vou embora.
Todos merecemos um emprego decente, assistência médica, boa educação, uma casa morar. Todos merecemos o sonho de Franklin Roosevelt. E é um crime que não tenhamos. E nunca teremos, enquanto continuarmos vivendo num sistema que enriquece alguns às custas da maioria.
O capitalismo é um mal, e não se pode regulamentar o mal: você tem que eliminá-lo, e substituí-lo por algo que seja bom para todos.
Este “algo” se chama democracia.”
– Michael Moore.
Ideologicamente, jamais me senti tão representado por uma obra audiovisual. ★★★★★
40- Cassino [visto em 17 de abril, em DVD]
Um degrau de intensidade abaixo d’Os Bons Companheiros, embora seja uma obra “irmã” – o que não quer dizer que não seja ótimo. ★★★★
41- Mente Criminosa [visto em 17 de abril, no cinema]
O problema de Mente Criminosa loca-se na trama investigativa-militar geral, que é absolutamente genérica e recheada de conveniências, uma vez que sua “segunda trama”, protagonizada por Kevin Costner – muito bem no filme, aliás -, é interessantíssima na abordagem da “reversão” da psicopatia da personagem e seu conflito de personalidade. ★★★
42- O Agente da U.N.C.L.E [visto em 18 de abril, em blu-ray]
É impossível não se divertir com os traços narrativos de Guy Ritchie pulando na tela. Uma pena que soe como um escritor que resume seus próprios – ótimos – livros antigos. ★★★
43- Quase Famosos [visto em 23 de abril, em DVD]
Será possível não se apaixonar por Penny Lane? Não se enxergar na pele de William? Cameron Crowe fez este aqui de coração. ★★★★½
44- Enquanto Somos Jovens [visto em 26 de abril, no Netflix]
“Josh: Se todos estão filmando tudo,
o que representa um documentário?
Não há sentido, é só merda que você filmou!
É um papo de velho? Talvez seja.
Vocês, jovens, te disseram que vocês podem fazer tudo.
Vocês não podem.
Você pensa que tudo está aí fora para que você tenha.
Não é.
Jamie: Ninguém é dono de nada.
Se eu ouço uma música de que gosto, uma história,
ela é minha.
É minha para usá-la. É de todos.
Josh: Não, não é! Isso não é dividir, Jamie,
isso é… roubar.
Jamie: Isso é papo de velho.
Josh: Eu sou velho!”
Grandes artistas realizam retratos fidedignos de sua época. Noah Baumbach é um deles. ★★★½
45- Ave, César! [visto em 27 de abril, no cinema]
Inegável e inteligentemente divertido na disparada de constantes sátiras e paródias – são atingidos: a persona do diretor cult, a indústria cinematográfica de Hollywood, os grupos comunistas, o pensamento mccarthysta, Channing Tatum -, comprovando a facilidade dos irmãos Coen em, afinal, rirem até do próprio trabalho, Ave, César! não consegue ir além por sua problemática construção estrutural, que o torna episódico com a decisão de dividir a trama num esquema semelhante ao de sketches. ★★★
46- Pacto de Sangue [visto em 30 de abril, em DVD]
Embora seja uma das produções solidificadoras e mais importantes do Cinema noir e conte com três ótimas interpretações, está entre os trabalhos menos cativantes do grande Billy Wilder. ★★★
47- No Coração do Mar [visto em 30 de abril, em blu-ray]
Visualmente grandioso, No Coração do Mar cresce muito ao tornar-se de fato um drama de sobrevivência, deixando de lado a imatura insistência no confronto unidimensional entre o capitão e seu primeiro imediato, numa tentativa desnecessária de envolver o espectador a partir de uma relação de antagonismo. Além disto, vale ser destacado um comentário contundente, realista e atual realizado pelo roteiro de Charles Leavitt: o notável incômodo que a elite sente quando alguém criado na pobreza alcança uma posição respeitável, de comando. ★★★
48- 12 Homens e uma Sentença
É assustador e brilhante deparar-se – numa revisão em momento perfeito – com o fato de que esta obra-prima torna-se mais atual a cada dia passado. O maravilhoso 12 Homens e uma Sentença é conduzido por uma linguagem sofisticada, rica em significados e metáforas visuais – a chuva iniciando no empate da votação e cessando na resolução, o contra-plongée do prédio e da justiça esmagando a cidade e quem a habita etc -, mas impressiona ainda mais por quanto tem a dizer a respeito do comportamento humano, da civilização social, da justiça e da dialética, mesmo quase seis décadas depois de sua realização. Por isso, é uma obra atemporal, que certamente rende um estudo aprofundado e digno de sua grandeza – e eu ainda espero ter a capacidade de fazê-lo. ★★★★★