O Cinema de Buteco adverte: o texto a seguir possui spoilers e deverá ser apreciado com moderação.
Logo após um breve prólogo em que vemos a família formada pelo camponês William (Ineson), sua esposa Katherine (Dickie), seus filhos pré-adolescentes Thomasin (a magnífica Taylor-Joy) e Caleb (Scrimshaw), os pequenos gêmeos Jonas (Dawson) e Mercy (Grainger) e um bebê recém-nascido mudar-se às pressas de sua Inglaterra natal ao interior dos Estados Unidos no início do século XVII, o terror A Bruxa traz uma cena intrigante que dará o tom de toda a narrativa: brincando de “esconde-esconde” com o irmão caçula, Thomasin fecha e abre os olhos algumas vezes até que a criança simplesmente desaparece debaixo de seu nariz. Ao olhar em volta à sua procura, tudo o que a garota tem é a visão amedrontadora da floresta sombria e cheia de mitos e lendas que cerca a rústica moradia em que sua família está instalada. É lá que, segundo se diz, vivem as forças do mal que passarão a atormentá-los.
Fanáticos religiosos que não só passam o dia rezando, mas também se culpando e ocasionalmente flagelando devido aos pecados cometidos mesmo em pensamento, William e família acreditam ter firmado um pacto com as forças ocultas que circundam seu pequeno rancho – e é justamente quando o pai leva Caleb a uma caçada na mata sem o consentimento da esposa que os primeiros eventos inexplicáveis começam a acontecer: primeiro um tiro sai pela culatra e acerta o olho de William, depois o bode negro pertencente à família passa a se comportar de maneira agressiva e, por fim, Caleb se perde na floresta e é encontrado febril e em uma espécie de transe. À medida que a situação foge do controle, Katherine tem mais certeza de que a culpada é Thomasin, que, segundo ela, se entregou aos poderes da bruxaria.
Não é preciso ter estudado muito a História das bruxas na Idade Média para entender o óbvio: por volta de seus 13 anos de idade e enfrentando os primeiros sinais do processo de entrada na puberdade, é natural que Thomasin seja encarada como a culpada pelo mal lançado sobre sua família – e o roteiro escrito pelo também diretor Robert Eggers é inteligente em comentar o peso da culpa que sempre se jogou no ombro das jovens mulheres ao mesmo tempo em que mantém o longa funcionando como um tenso e inquietante exercício de gênero. Perceba, por exemplo, que por mais que a menina seja acusada de atividades em nada relacionadas com suas funções sexuais, todos (incluindo sua mãe, o que é mais assustador) se apressem em chamá-la de “puta”; ou ainda, como os planos subjetivos que revelam o interesse de Caleb por seus decotes comentam o argumento canalha (mas lamentavelmente tão comum) de que a mulher não teria “o que merece” caso não houvesse “provocado”.
Fazendo um trabalho magnífico ao lado do diretor de fotografia Jarin Blaschke (que em um mundo justo seria indicado a todos os prêmios da categoria no final do ano), Eggers insere o espectador em um ininterrupto clima de angústia e inquietação através da paleta entristecida que, ajudada pelas locações cinzentas e melancolicamente nebulosas, consegue transmitir a sensação de que algo macabro pode acontecer a qualquer momento apenas com as imagens de suas paisagens. Da mesma maneira, a trilha sonora do filme é nada menos que soberba, misturando gritos, palmas e cantares ritualísticos, flautas, violinos e gaitas saxônicas e cantos gregorianos desesperados e contribuindo com o tom pagão e de ameaça satânica que o projeto adota.
Com um final apoteótico que, apesar de não representar uma grande reviravolta, fecha de forma impecável o ciclo tanto de demonização da sexualidade feminina quanto da libertação da opressão religiosa, A Bruxa é, sem dúvida alguma, um dos grandes filmes de terror de 2015.
A Bruxa (The Witch, Canadá/EUA, 2015). Escrito e dirigido por Robert Eggers. Com Anya Taylor-Joy, Ralph Ineson, Kate Dickie, Harvey Scrimshaw, Lucas Dawson, Ellie Grainger, Julian Richings, Bathsheba Garnett, Sarah Stephens e Wahab Chaudhry.