Acredite se quiser: Clint Eastwood voltou a fazer bons filmes!
A GUERRA TRANSFORMA HUMANOS EM SELVAGENS. Cada um defende a sua bandeira, a sua ideologia, e a vida humana deixa de ser respeitada. No caso dos Estados Unidos pós-11 de setembro, isso se tornou ainda mais problemático. Para boa parte dos norte-americanos, o islamismo é uma seita demoníaca liderada por selvagens que desrespeitam mulheres e obrigam crianças a usarem coletes com bombas. Clint Eastwood retrata essa impressão no excelente Sniper Americano (American Sniper, 2014), ao mesmo tempo em que nos dá de presente a melhor atuação da carreira de Bradley Cooper (Se Beber, Não Case!) em uma narrativa sobre os efeitos da guerra no psicológico de uma pessoa.
Um dos grandes obstáculos do longa-metragem é superar todos os “defeitos morais” que acompanham a perspectiva de quem não concorda com as opiniões políticas de Eastwood. De fato, existem motivos para tais críticas: existe um grande desrespeito pelo povo do Afeganistão, que são descritos como “selvagens” em uma cena, ao mesmo tempo em que os norte-americanos possuem essa aura de heróis, além de serem bonitões. É uma autêntica personificação do discurso de “nós” contra “eles”, que os brasileiros politizados conhecem muito bem. Precisamos decidir se a avaliação da história será prejudicada pelo nosso conhecimento prévio ou se seremos capazes de ignorar nossas ideologias para aceitar que estamos diante uma obra de ficção (ainda que baseada em fatos) e com um (quase) herói em crise.
Sniper Americano retrata a vida do atirador Chris Kyle, um homem que serviu ao seu país eliminando mais de 160 homens do exército inimigo – incluindo mulheres e crianças. A guerra não é bonita e Sniper Americano trabalha com as consequências disso na cabeça dos envolvidos. Não chega a ser tão agressivo e cru quanto Corações de Ferro, com Brad Pitt, mas a visão mais leve em nada prejudica a qualidade do filme, que pode ser considerado como um momento de reconciliação de Eastwood com o cinema depois de tantos trabalhos de qualidade duvidosa.
O principal trunfo do longa-metragem é a atuação de Bradley Cooper. Se em O Lado Bom da Vida ele já havia mostrado que era bem mais que um rosto bonito, agora ele entra de vez para o time dos principais atores de Hollywood. O seu personagem sofre e faz com que o espectador sofra junto, se sinta ansioso por cada momento em que ele entra em combate e torce para que chegue vivo em casa para a sua família. Kyle age como se fosse uma espécie de Capitão América com rifle, e isso é extremamente irritante, mas o ator mostra sua dedicação com o personagem ao nos convencer das mudanças em seu comportamento. Da insegurança inicial de quem está invadindo um país desconhecido, considerado como o “inimigo”, até a incrível calma e tranquilidade a cada vez que é convocado para novas missões. Com o passar da narrativa, o personagem se transforma e demonstra ignorância acerca de sua “dependência” com o violento universo vivido na guerra. É um outro mundo e Kyle se sente melhor nele do que ao lado de sua esposa.
Muitas vezes consideramos a bagagem cultural e política como um importante requisito na hora compreender uma obra, mas às vezes precisamos aceitar que esse conhecimento pode contaminar a nossa interpretação com um pré-conceito. No caso de um longa-metragem que apoia a guerra, e com direção de um cineasta assumidamente republicano, a parcela mais politizada do público já torce o nariz e concentra suas críticas nas entrelinhas da narrativa. Nas tais mensagens políticas muitas vezes nada implícitas. No caso de Sniper Americano, o excesso de patriotismo e xenofobia refletem bem a cabeça de muitos norte-americanos bitolados, mas reduzir o filme apenas à sua “suposta” apologia à violência é um grande equívoco.
Em momento algum o soldado interpretado por Cooper demonstra estar confortável com as honrarias recebidas. Na verdade, é possível perceber o quanto ele se sente deslocado de tudo e todos, especialmente quando é reconhecido e recebe elogios por seu trabalho. Eastwood poderia muito bem ter trabalhado o longa de uma maneira em que o atirador aceitasse o que todos lhe diziam, que ele era um grande herói de guerra, mas é exatamente ao contrário. Chris Kyle só relaxa depois de completar a sua última missão, numa emocionante sequência em que liga para a sua esposa e avisa que “agora posso voltar para casa”. Quase como se tivesse retirado de si um enorme peso, curado o seu vício, exorcizados os seus fantasmas pessoais.
Lembrando bastante Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow, o longa-metragem de Clint Eastwood pode ter dividido o público em relação ao seu posicionamento, mas é difícil questionar a qualidade da obra como um todo – exceto, óbvio, pela porra do bebê de brinquedo. WTF, véi! – e principalmente pelo trabalho de Bradley Cooper. Quem for capaz de deixar de lado a política e deixar para refletir somente sobre os efeitos da guerra em um homem, certamente terá uma ótima opção. Se você preferir apenas um filme de ação com coisas explodindo, bem, as reprises do Van Damme podem ser entediantes de vez em quando e variar por uma produção do Clint Eastwood é uma boa. E finalmente, se você quer encontrar motivos para criticar os republicanos e todos aqueles que apoiam a guerra, não existe filme mais indicado para merecer seu ódio – mas repito que se trata de uma obra de ficção no final das contas e ninguém ganha dinheiro contando a verdade, vide a bilheteria de Corações de Ferro, que mostra “heróis de guerra” como estupradores.
Sniper Americano (American Sniper, 2014) De Clint Eastwood. Baseado em livro de Chris Kyle. Com Bradley Cooper e Sienna Miller.