O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica a seguir possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação. Para quem quiser apreciar um texto com menor teor “spóilico”, clique aqui!
UMA COISA CURIOSA A SE DIZER SOBRE GAROTA EXEMPLAR é que existem praticamente dois filmes (ou até três, dependendo da sua boa vontade) dentro dele. A primeira parte é aquela que apresenta um homem casado, Nick Dunne (Ben Affleck), que precisa recorrer à polícia depois de chegar em casa e perceber que a sua esposa Amy (Rosamund Pike) desapareceu. Nela conhecemos o personagem, temos uma introdução bem feita, que nos apresenta a um sujeito ambíguo: Quais são os segredos que ele esconde? Ele traiu a esposa, ele mente, ele recebe ligações no celular o tempo inteiro. O diretor David Fincher (Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres) sabe o que tem na mão e faz questão de brincar com isso durante essa primeira parte. Ele alimenta o caráter duvidoso de seu protagonista e deixa o público fazer seus próprios julgamentos.
Possivelmente, o espectador irá morder a isca e questionará as atitudes de Dunne. E na medida em que o roteiro se desenvolve, e a investigação avança, vamos conhecendo mais da vida do casal e cria-se quase a certeza de que ele é mesmo um assassino, e está apenas fingindo ser um idiota (como na cena hilária, e que diz muito sobre o personagem, em que ele decifra a primeira pista deixada por sua esposa com uma expressão de quem acabou de se sentir descobrindo um grande segredo). Aliás, numa estratégia brilhante do roteiro, a detetive Rhonda Boney (Kim Dickens) retruca seu companheiro sedento pela prisão de Dunne dizendo que está conduzindo uma investigação e que precisa de provas para poder acusar alguém de assassinato. Paralelamente, a mídia cobre o evento da forma mais agressiva e sensacionalista possível: para os programas de televisão, o bonitão matou a esposa para ficar com a grana.
Já o segundo filme surge como um murro no meio da nossa cara. Um murro forte para desnortear. Daqueles que te levam a nocaute e você fica zonzo por horas sem entender o que diabos está acontecendo. A partir da narração de mais uma passagem do diário de Amy, assistimos a uma cena em que a própria aparece revelando seu engenhoso truque. Ela fingiu tudo para incriminar o marido após descobrir que seria abandonada. Ou seja, não seria errado afirmar que encontramos um filme de vingança capaz de rivalizar com Kill Bill, de Quentin Tarantino. E a motivação de ambos? Claro. O amor, essa dor que consome a nossa alma e nos faz cometer as maiores loucuras. E que, é bom dizer, tira o psicopata maluco que vive dentro de cada um de nós – em casos extremos, óbvio.
Amy acredita ser uma verdadeira artista, dotada de inteligência superior (que ela realmente possui), e que se acha capaz de se antecipar aos movimentos de todos os envolvidos no seu plano maligno. Seu plano poderia ser perfeito, se ela tivesse considerado que vive no mundo real, e que nesse mundo, você ser uma princesa mimada e vingativa, não basta ser manipuladora: você precisa se sujar, fazer parte do jogo sujo. E Amy acreditou que bastava engordar, viver afastada da cidade, usar um disfarce e continuar jogando com a vida. Após ser roubada e agredida, ela se volta justamente para aquele que sempre manteve por perto, para a sua própria segurança e conveniência, seu antigo namorado Desi Collings (Neil Patrick Harris). Amy sabe que mantém o sujeito refém do seu amor, e não hesita em acabar com a vida dele para voltar para os braços do marido – em outra reviravolta surreal do roteiro, daquelas que nos deixam boquiabertos com o tanto que a personagem é maluca.
No entanto, voltando para o campo mais técnico, o sucesso dessa divisão não seria possível sem a montagem genial de Kirk Baxter, parceiro de Fincher desde O Curioso Caso de Benjamin Button. As mudanças na narrativa acontecem em diversos momentos e sem confundir o espectador, sem prejudicar o ritmo da trama, e sempre com alguma brincadeira, como no caso em que acompanhamos Dunne saindo da prisão de carro e há um corte para o momento em que o carro de Collings estaciona na porta de sua casa. E vale ressaltar o detalhe da fotografia de Jeff Cronenweth no momento em que descobrimos o truque de Amy: em todas as cenas anteriores com a personagem havia uma iluminação mais fantasiosa que lentamente ia ficando mais sombria para causar a sensação de sufoco. No entanto, quando a mulher reaparece é um belo dia de verão, para mostrar como ela se sente a caminho de sua “liberdade” e a satisfação de realizar uma bela vingança.
Outro detalhe importante que torna Garota Exemplar um “filme exemplar”, como ouvi alguém dizendo em algum lugar, é o excelente trabalho do elenco. Fincher tira o melhor de todos os atores, e desta vez, podemos dizer sem medo, acertou em cheio: Tyler Perry está incrível, e realmente divertido, na pele de um advogado arrogante e irônico, que possui o tempo em cena necessário para funcionar tanto como alívio cômico quanto para auxiliar no desenvolvimento da trama. Kim Dickens e Patrick Fugit (o protagonista de Quase Famosos) possuem uma química envolvente como os investigadores do desaparecimento de Amy, e também sobram elogios para Carrie Coon, como a irmã gêmea do personagem de Affleck. Com um time de coadjuvantes inspirado, era de se esperar que Affleck e Pike fizessem sim um trabalho eficiente, mas o que acontece é que somos presenteados com as melhores atuações da carreira de ambos e que possuem enormes chances de figurarem em listas de premiações da temporada. Se Affleck provavelmente conseguiu afastar de vez o estigma de “ator ruim, diretor foda”, o mérito maior vai para a sua companheira: Pike passa por uma transformação sutil, que não chega a ser como Charlize Theron em Monster, mas funciona perfeitamente para a história. Afinal, estamos lidando com uma personagem mimada que certamente achou que estava fazendo demais engordando um pouquinho, pintando o cabelo, andando com óculos. Não podia ser algo radical, e a atriz acertou na condução da sua personagem do começo ao fim.
Trent Reznor e Atticus Ross continuam firmes como compositores favoritos de David Fincher. Em sua terceira contribuição consecutiva para o cineasta (A Rede Social e Millennium – Os Homens Que Não Amavam as Mulheres), a dupla oferece um meio termo entre os dois trabalhos anteriores. Não chega a conter o brilho otimista do material que conduz as peripécias digitais do criador do Facebook, mas também não se aproxima do clima obscuro e pesado da investigação de Rooney Mara e Daniel Craig. A mudança de tom da trilha quando envolve as narrações do diário de Amy fazem uma rima perfeita com o longa-metragem: afinal, será que essa música realmente transmite paz ou apenas cria uma sensação de perigo constante em que nada parece ser exatamente o que pensamos? Como compositores, Reznor e Ross parecem ter alcançado uma maturidade perfeita, pelo menos quando se diz respeito à atmosfera dos longas de Fincher.
O ponto alto de Garota Exemplar, e o que o enquadra como a visão de romance de David Fincher, está na dinâmica entre o casal e as transformações sofridas por Dunne. Ele começa decidido a se divorciar, e perder tudo de bom que a convivência oferece, então passa a realmente ter dúvidas sobre o que deseja. Dunne é um homem sem personalidade, e que desprovido de amor próprio, se deixa manipular pelo truque ardiloso de sua esposa, que facilmente se torna na maior mentirosa da história do cinema em 2014, e volta para a casa “apaixonada” pelo homem que viu dando entrevistas apaixonadas na televisão. Ou seja, para os dois não existe uma noção muito certa do que é errado. Vale apenas a própria vontade, independente das consequências. Existe uma coisa doentia em amar, e bem, Garota Exemplar é uma obra que captura isso com perfeição.
Se David Fincher havia fracassado miseravelmente em sua tentativa de mudar o tom de suas obras com O Curioso Caso de Benjamin Button (que nas mãos de qualquer outro diretor teria arrancado lágrimas compulsivas dos espectadores mais sensíveis, porém se tornou algo sem vida nas mãos de um diretor que não sabe lidar com sentimentos do bem), em Garota Exemplar ele finalmente consegue entregar a sua ideia de uma obra romântica. Independente do quão doentia seja a relação dos personagens, a verdade é que existe um tipo de amor que não estamos acostumados a ver nas telas de cinema, e um tipo de amor incompreensível. Ouso dizer que se trata mais de obsessão, mas a verdade costuma repousar nos olhos do observador, e não seria prudente afirmar que estou correto a esse respeito. Garota Exemplar é um daqueles filmes que grudam na nossa cabeça por dias, e você ainda não consegue chegar a uma conclusão sobre o que realmente pensar sobre as ações dos personagens retratados. E o mérito vai para a direção brilhante de Fincher, que provavelmente será um candidato forte ao Oscar de Melhor Diretor em 2015, e torço para que ele finalmente possa levar o prêmio para casa.