O Cinema de Buteco adverte: o texto a seguir possui spoilers e deve ser apreciado com moderação.
EM PRIMEIRO LUGAR, AVISO QUE ME RECUSO A CHAMAR O FILME DE Operação Skyfall porque isso só pode ter sido elaborado por alguém que nem assistiu ao filme. E também que este texto revela pontos importantíssimos da trama. É altamente recomendável que seja lido apenas por quem viu o filme. Skyfall não é apenas o 23º filme (oficial) do agente 007, ele também marca as comemorações dos 50 anos desta que é uma das franquias mais rentáveis e duradouras da história. Por isso, é evidente que o longa seja carregado de referências à própria série, com o grande mérito de tornar isso orgânico ao ótimo roteiro de John Logan, Neal Purvis e Robert Wade e funcionar tanto se analisarmos em retrospecto, quanto como um filme solo, que traz cenas de ação memoráveis.
Cenas de ação que demonstram a competente direção de Sam Mendes (primeiro oscarizado a assumir um filme da franquia) em nos fazer compreender com clareza tudo o que se passa na tela, mesmo no meio de tanto frenesi. Exemplo disso já está na cena inicial, uma perseguição que acaba com uma luta em cima de um trem, resultando em Bond levando um tiro acidental de Eve (Harris), sob as ordens de M (Dench), e tido como morto pelo MI6. Logo depois assistimos à abertura, que relembra os filmes clássicos da série, não apenas pelos efeitos, como pela melancólica (e linda) música de Adele.
Antes da luta, que foge do lugar comum da série em “matar” o personagem principal em cinco minutos, Bond, no meio de um trem sendo destruído, faz questão de ajeitar a abotoadura de seu paletó, reforçando a tradição elegante de seu personagem. E esta é uma das características mais marcantes do filme: o seu embate entre tradição e renovação.
A ideia de renovação fica ainda mais clara logo no começo, quando M visita Mallory (Fiennes), o presidente do comitê de segurança, que “recomenda” a aposentadoria a ela. Várias passagens e uma angustiante cena em um elevador também deixam evidente que o próprio Bond já está um tanto velho e fora de forma. Mas provavelmente o sinal mais óbvio desse embate é a introdução do personagem Q, inventor dos “apetrechos” tecnológicos do MI6, comumente interpretado por atores mais velhos (especialmente Desmond Llewelyn, que participou de 17 filmes da franquia) e que desta vez ganha o rosto do jovem Ben Whishaw.
A divertida dinâmica construída nas cenas que envolvem Bond, o tradicional agente, e Q, o nerd tecnológico, acentua mais o embate tradição vs. renovação. Na cena em que ambos se conhecem em um museu, Q entrega a Bond apenas uma arma (uma Walther PPK, óbvio) e um rádio, com a frase “O que você esperava? Uma caneta que explode? Nós não usamos mais essas coisas”.
E essa frase é apenas uma das várias referências à série (as engenhocas de Q nos primeiros filmes eram de deixar MacGyver com inveja), além dos cenários comuns como praia e barcos, o espírito mulherengo de Bond (e o uso de fogos de artifício para remeter a sexo é humor inglês de qualidade), o uso da clássica música do personagem e seu amor pelo seu carro Aston Martin. Até mesmo uma referência a Cassino Royale (filme recente da série) pode ser encontrada, já que a cena romântica com a nova Bond Girl, Sévérine (Bérénice Marlohe), ocorre em um chuveiro.
Mas provavelmente a mais divertida delas ocorre quando Bond pisa na cabeça de um dragão de Komodo para escapar de uma briga, referenciando 007 – Viva e Deixe Morrer, de 1973, no qual Roger Moore escapa de uma ilha pulando sobre cabeças de crocodilos. A cena é provavelmente a mais inverossímil do longa (sair de um cassino ileso depois de matar três pessoas sem motivo algum?), mas é perdoável já que se trata de uma homenagem aos filmes estrelados por Moore.
Retomando às já citadas bem dirigidas cenas de ação (e que destroem tantas coisas que devem ter consumido metade do orçamento do filme), destaco uma em um prédio todo de vidro, no qual vemos uma luta iluminada por um jogo de luzes e sombras, que revelam muito da personalidade de Bond naquele instante. A queda do metrô e o embate final, culminando na destruição da casa, que ganha uma linda iluminação de guerra, também são pontos altos da projeção.
Mas não há como não destacar a bela performance do elenco, com exceção de Bérénice. Harris, Fiennes e Whishaw estabelecem uma ótima dinâmica com Craig, que, por sua vez, dá a dramaticidade necessária para o momento do personagem sem perder seu timing cômico. Fiennes apresenta uma personalidade dúbia que jamais parece injustificada. Mas os holofotes merecem mesmo ir para o vilão Silva, interpretado por Javier Bardem.
Mendes nos prova de vez que para Bardem ser um vilão sensacional, ele só precisa de um penteado ruim. Com trejeitos sutis e pretensões simples (apenas vingança, nada de dominar o mundo), Bardem cria um vilão que, mesmo sendo assustador, nos mostra sua face humana e frágil. E é ousado que uma franquia tida como machista (com razão) adicione pitadas homossexuais na dinâmica entre Bond e Silva.
O diretor recentemente declarou em entrevista que a trilogia Batman, de Christopher Nolan, influenciou seu filme, o que fica evidente no personagem de Bardem, um vilão com deformidades físicas que assiste calmamente o mundo pegar fogo pelas próprias divergências internas. Em outro momento, Bond usa frase “A Storm is Coming” (uma tempestade se aproxima) para indicar a chegada de uma “guerra”. Pode ser coincidência o uso idêntico da mesma frase dita por Selina Kyle (Anne Hathaway) em Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge, devido à proximidade das estreias, mas pode significar outra maneira de homenagear o filme de Nolan.
Por fim, o ato final nos mostra o quanto a trama foi bem construída para revelar características profundas de seu protagonista. Bond protege M, o mais próximo que ele possui de uma figura materna, na casa onde passou a infância (o rancho Skyfall) e assistimos ao final esta, que é a sua única ligação afetiva, ser destruída pelo seu trabalho, seguida da frase “eu nunca gostei muito desta casa mesmo”. Não obstante, assistimos M morrendo (no que eu chamo de “cláusula Judi Dench – eu não aguento mais esse papel”) na capela onde estão sepultados os pais de Bond.
Para finalizar, assistimos à introdução de mais um antigo personagem: Moneypenny (interpretada originalmente por Lois Maxwell, de 1962 a 1985). E uma quebra de tradição: o famoso tiro para a câmera antecede os créditos finais, e não os iniciais. Com tudo isso, Mendes nos mostra que é possível fazer um ótimo longa de ação e inovar – mesmo em um terreno tão tradicional.
Nota:[quatroemeia]