Com sessões de alguns dos títulos mais aguardados em exibição no Festival do Rio 2017, o quarto dia de #ButecoInRio ganha estofo e aquece as máquinas para o que ainda está por vir. Confira:
07) Sobre Rodas ★★★
(idem, Brasil, 2017. De Mauro D’Addio)
Local: Estação NET Ipanema, em Ipanema
Quem diria que o Festival do Rio se enquadraria ao clima de dia das crianças, não é mesmo? Pois Sobre Rodas, ao acompanhar uma pequena aventura da menina Laís (Lara Boldorini), de 12 anos, e do menino Lucas (Cauã Martins), de 13, trata-se definitivamente de um road movie infanto-juvenil.
Ambientada nos dias atuais, a narrativa dirigida e roteirizada por Mauro D’Addio carrega uma parcela da inocência característica do auge das produções infanto-juvenis – na década de 1980, predominantemente – ao adotar como cenário um território do interior brasileiro, cercado por estradas, onde a peregrinação é característica e o afastamento urbano preserva algumas convenções do passado. As crianças têm acesso a celulares, as relações são marcadamente atuais e, portanto, não há fuga da realidade; há, porém, diferenças evidentes.
Os recursos digitais, inclusive, são utilizados pelo garoto Lucas para que a aventura vivida por ele e Laís em busca do pai desaparecido da menina não seja tão “aventureira” assim. A linguagem se equilibra entre um tom nostálgico, cândido – a própria ausência paterna remete às obras oitentistas -, e o semblante da contemporaneidade.
Ao adotar assumidamente uma estrutura de “missão de aprendizado”, o roteiro manipula os caminhos da expedição para que seu destino transmita as mensagens ambicionadas pela obra, numa fórmula previsível, mas nem por isso menos honesta ou simpática. O desenvolvimento da relação entre os dois protagonistas é tratado com maturidade e as interpretações da dupla transmitem uma verdade capaz de, independentemente da previsibilidade dos caminhos, nos cativarem até que o destino final seja alcançado.
Observação: a sessão foi aberta por um bate-papo com o diretor.
08) Lola Pater ★★½
(idem, França, 2017. De Nadir Moknèche)
Local: Cine Roxy, em Copacabana
“Você não imagina o sofrimento que é viver num corpo que não é seu.”, diz Lola (Fanny Ardant), antes Farid, em certo momento da projeção. Aqui, a chamaremos apenas de Lola – como a própria desejaria.
Encarar uma realidade que nos confronta com nossas convicções é sempre uma experiência reveladora e, embora não esboce uma linha de pensamento retrógrada, Zino Chekib (Tewfik Jallab) é submetido a um choque ao descobrir que seu pai, há tanto ausente, decidiu tornar-se uma mulher. Exceto se formos fascistas, portanto incapazes de sentir empatia por qualquer tipo de situação que contrarie nossas convicções, podemos compreender a angústia da personagem-título em seu inconciliável desejo de ser reconhecida por seu filho apenas como aquilo que ela é: seu pai; o que não antagoniza, todavia, o estranhamento experimentado por Zino, não pela escolha do patriarca, mas pela barreira que o tempo construiu entre os dois.
A abordagem de Nadir Moknèche, ao mesmo tempo em que é inegavelmente humana por sua proposta e pela capacidade de nos colocar nesta indecisão, falha em aproximar-se do drama que se desenrola entre os dois protagonistas, provando-se mais à vontade na construção de um clima tragicômico do que na construção dramática em si. Depois de nos aproximar do choque, Lola Pater mantém, paralelamente, uma espécie de “barreira de afastamento”, também, entre o espectador e as angústias de Lola e seu filho após o encontro inicial, não sendo capaz de nos envolver em seus desencadeamentos ou oferecer conflitos suficientemente poderosos para igualarem, do ponto de vista de sensibilidade, a experiência inicial.
09) Based on a True Story ★★★★½
(D’après une histoire vraie, França/Bélgica, 2017. De Roman Polanski)
Local: Cine Roxy, em Copacabana
Atenção: o texto a seguir possui spoilers, e deve ser apreciado com moderação.
Roman Polanski e Olivier Assayas são duas figuras que o cinema brilhantemente decidiu unir. Ao juntarem forças para adaptar o romance de Delphine de Vigan, um dos maiores cineastas em vida e um realizador que cada vez mais se credencia no alto escalão do cinema mundial bordam um texto poderoso, que se estende numa narrativa, comandada pelo veterano, absurdamente envolvente.
“As pessoas já não ligam para a ficção”, profere a misteriosa Elle (Eva Green) para a escritora Delphine de Vigan (Emanuelle Seigner) numa das primeiras vezes em que se intromete um pouco acima do adequado na vida profissional desta – e, a partir deste momento, a interferência é crescente. A priori, é difícil compreender a natureza de Elle: trata-se de uma mera admiradora obcecada ou há interesses perigosos por trás de suas intenções? O elemento da obsessão, a impossibilidade de segurança e privacidade, afeta Delphine a partir da chegada deste elemento, e retoma discussões que Assayas havia levantado em “Personal Shopper”, marcando a presença do roteirista na trama. E qual autor, criador criativamente frutífero, não se percebe assombrado por suas personagens?
Based on a True Story é um thriller psicológico conduzido por Roman Polanski com maestria. Dos encontros entre as protagonistas que, sem exceções, sempre ocorrem sem a presença de terceiros, atravessamos os abusos de interferência, o quase perturbador momento em que a enigmática mulher decide passar-se pela renomada escritora – com a aceitação desta – e, enfim, à decisão marcante e irreversível de Delphine: “Devo escrever sobre Elle”. A obra propõe suas discussões por meio da estética e, enquanto aproxima o figurino da autora dos tons escuros de sua “parceira”, constrói uma relação assustadora passo a passo, oferecendo pistas sem que haja excessos em função da tensão. Num tom de força crescente, a ficção precisa tomar o real para que o real tome a ficção, uma vez que, lembramo-nos, “as pessoas já não ligam mais para a ficção.”
O criador precisa ser absorvido por sua obra e todo autor é, irrefutavelmente, um obcecado pela própria consciência. Daí, as perturbações oriundas por um bloqueio criativo: é como se – e, neste momento, tomo também a experiência de “ser autor” – nos afastássemos de nós mesmos, e precisássemos mergulhar outra vez em nossas próprias habilidades de criação para que possamos retomar a produção. Não conhecer; precisamos nos “reconhecer”. E, no que diz respeito ao desenvolvimento de personagens, elas são extensões, sempre reveladoras, da própria psique do autor – assim, quando Elle força Delphine a abandonar todos os seus compromissos, digamos, “corporativos”, provavelmente revela um desejo da própria em abandonar todo aquele “prestígio de autoria” para, enfim, poder embarcar no processo puro, simples e fatalmente traumático da boa criação, exigente de um nível intenso de entrega.
Enquanto sua consciência de criação se permite ser tomada por Elle para que possa, enfim, concebê-la, lembramo-nos de como a ficção abre os olhos da consciência para a realidade: na personagem, Delphine concentra as aflições que a desconsolam no mundo que a cerca, a exemplo da inexistência da privacidade, dos abusos de poder sobre seus próprios desejos e de uma profunda solidão. Aflitivo como um legítimo processo de criação e tão prazeroso quanto apreciar seus resultados, Based on a True Story é irresistível.
10) A Guerra dos Sexos ★★★
(Battle of the Sexes, Reino Unido/EUA, 2017. De Valerie Faris e Jonathan Dayton)
Local: Cine Roxy, em Copacabana
Billie Jean King (Emma Stone) é uma das mais interessantes personagens femininas que o cinema estadunidense ofereceu nos últimos anos – e é uma pena que A Guerra dos Sexos não dê conta de retratar profundamente sua protagonista.
Situado no início da década de 1970, num contexto de libertação feminina por meio do esporte, o longa-metragem esforça-se no sentido de nos fazer compreender o empenho de Billie Jean, à época número um do tênis feminino, no sentido de alcançar a igualdade de tratamento e remuneração entre homens e mulheres nas quadras. Consciente, a obra expõe a lógica financeira que, até os dias atuais, “justifica” a aberração que é o fato de mulheres e homens que praticam o mesmo esporte, no mesmo nível de exigência, serem remunerados de forma tão discrepante. Há claras boas intenções no projeto e, embora frases de efeito artificiais sirvam como sua muleta, o roteiro é capaz de retratar dignamente a postura resistente das tenistas frente ao machismo institucional e enraizado que as marginalizava em seu exercício profissional.
Billie Jean torna-se um símbolo deste movimento à medida que, conforme seu marido observa, carrega no tênis uma paixão desmedida e absoluta – e, portanto, defende a causa da dignificação do esporte prioritariamente. A Guerra dos Sexos, no entanto, jamais alcança a nobre capacidade de nos mergulhar numa mulher que, em nome da causa que, de maneira nobre e compromissada, decidiu defender, precisou sacrificar seus próprios desejos sentimentais, reprimir sua sexualidade e, assim, viver em agruras.
O projeto prefere, contudo, trilhar um caminho que a coloca em igualdade – no âmbito do espaço na narrativa – com Bobby Riggs (Steve Carell), um fanfarrão do marketing que, embora seja uma figura divertida e, em sua canalhice, funcione como alívio cômico, não carrega um décimo da complexidade que Billie Jean nos oferece – e, diga-se, a própria tenista reconhece que aquele sujeito não representa a “verdadeira ameaça”, mas sim Jack Kramer (Bill Pullman), numa posição de poder. Todo o percurso de preparação e engrandecimento do “grande duelo” é divertido, sensibiliza moderadamente e, afinal, consegue levantar algumas questões relevantes. Enquanto os créditos sobem – e o nome de Valerie Faris surge oportunamente antes do de Jonathan Dayton -, porém, fica a sensação de que um lado daquela história tinha mais a nos oferecer.