38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo #37
O cineasta francês Laurent Cantet, que escreveu e dirigiu aquela que considero uma das grandes obras-primas da década passada, Entre os Muros da Escola, tem um talento admirável para extrair tensão, urgência e força dramática de conflitos cotidianos filmados de maneira documental e encenados por atores (ou não atores) de aparência comum – e neste seu novo Retorno a Ítaca não é diferente: concentrando seus 95 minutos em um “jantar na laje” em que um grupo de amigos cubanos se reúne para celebrar o retorno temporário de Amadeo (Jiménez), que se mudou para a Espanha há 16 anos e nunca mais voltou, o longa investe na dinâmica entre seus excelentes atores para nos envolver em um drama minimalista sobre lembranças, arrependimentos e culpa.
Inicialmente inclinados a brindar sua amizade duradoura e a relembrar os momentos divertidos que compartilharam na juventude, Tanía (Santos), Rafa (Hechevarria), Aldo (Ferran), Eddy (Perugorría) e, claro, Amadeo – que já estão naquela fase em que não conseguem mais falar de outra coisa a não ser do passado – passam gradativamente a expor feridas que, ora revelando uma profunda frustração pelos resultados de suas próprias escolhas, ora externando mágoas que ainda alimentam uns para com os outros e ora simplesmente esbravejando contra o atraso econômico de seu país, jogam uma nova luz sobre a maneira com que reagem aos temas abordados naquelas conversas e, obviamente, sobre a própria essência de seus personagens.
E, sem revelar muito sobre as reviravoltas trazidas pelo roteiro, é essencial que o elenco dirigido por Cantet esteja bastante alinhado e tenha um domínio perfeito de seus personagens – algo que podemos perceber logo nos primeiros minutos de projeção, quando os maravilhosos Néstor Jiménez e Isabel Santos mostram-se simultaneamente desconfortáveis e atraídos pela presença um do outro, antecipando rachaduras das quais teremos conhecimento apenas mais tarde. E é de Santos, aliás, o momento mais tocante de toda a projeção: perceba o misto de de vaidade, dor, auto-comiseração que brota do olhar da atriz ao olhar uma foto que, tirada há décadas e envelhecida pelo mofo do tempo, traz seu rosto jovem, sorridente e livre do fardo que há muito se acostumou a carregar.
Passeando com fluidez entre seus atores com uma câmera curiosa que parece buscar a todo custo derrubar as máscaras sociais auto-impostas pelos membros daquele grupo, Cantet faz seus diálogos vibrarem através de uma abordagem naturalista que nos convida a esquecer as mesas, cadeiras e talheres que compõem seu único cenário para buscarmos nas rugas, carecas, barbas grisalhas, cabelos deselegantemente tingidos, olhos constrangidos e sorrisos desconcertados daqueles homens e mulheres a “verdade” de sua diegese, transformando-nos em membros ouvintes daquela reunião e fazendo com que criamos uma identificação cada vez maior com aquelas figuras tão vulneráveis.
Infelizmente, Cantet acaba empobrecendo seu longa ao transformá-lo em uma grande peça de campanha anti-Cuba, criticando problemas que todos nós sabemos que existem na ilha de Fidel (a censura e o boicote à internet livre, a dificuldade de viajar a outros países, os salários baixos, etc), mas esquecendo-se – ao que parece, intencionalmente – de incluir suas virtudes na equação (sendo a qualidade de serviços públicos como educação e saúde a principal delas). Não que sua visão míope de estrangeiro curioso consiga destruir o projeto, mas ela certamente expõe uma faceta não muito lisonjeira de um artista normalmente tão brilhante.
Retorno a Ítaca (Retour à Ithaque, França, 2014). Escrito e dirigido por Laurent Cantet. Com Isabel Santos, Jorge Perugorría, Fernando Hechevarria, Néstor Jiménez, Pedro Julio Díaz Ferran, Carmen Solar, Rone Luis Reinoso e Andrea Doimeadios.