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Crítica: Relatos Selvagens – Mostra de SP

38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo #1

É praticamente impossível assistir a uma antologia como Relatos Selvagens e não deixar a sala de projeção comparando seus segmentos – uma atividade que costuma gerar frustração por revelar que para cada história realmente interessante que acabamos de ver, precisamos ser submetidos a uma série de outras que provavelmente não chamariam nossa atenção caso não estivessem contidas no “pacote” que compramos. Para piorar, é igualmente inevitável que a ordem na qual os segmentos forem apresentados decepcione o espectador de alguma maneira: se deixar seus melhores “curtas” para o fim, o diretor corre o risco de perder seu público muito antes de chegar a eles (há vários teóricos de roteiro que acreditam que um filme precisa conquistar o espectador em seus dez minutos iniciais); por outro lado, se o filet mignon for servido na entrada, o restante da projeção pode se transformar em um grande exercício de tédio.

Em linhas gerais, o maior problema deste longa escrito e dirigido por Damián Szifrón é justamente escolher a segunda opção.

E digo “em linhas gerais” porque essa matemática não é perfeita, claro. Mas se os dois primeiros segmentos do projeto, “Pasternak” e “As Ratas”, não são seus melhores, ao menos contam com o fator-surpresa: no primeiro, Szifrón parte de uma situação aparentemente banal, um senhor (Grandinetti) que tenta flertar com uma mulher bem mais nova (Marull) durante um voo, e passa a revelar gradativamente o absurdo que ela representa, culminando em um freeze frame que funciona como uma gag perfeita para apresentar a premissa do projeto; já no segundo, em que uma garçonete (Zylberberg) precisa decidir o que fazer quando o homem que destruiu sua família entra em seu restaurante, recebendo num inusitado conselho de sua “chapeira” (Cortinese), é a violência gráfica que o cineasta usará ao longo de toda a projeção (sua inspiração em diretores como Edgar Wright e Martin McDonagh é clara) que surpreende o espectador.

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Dentro de sua proposta de criar pequenos contos em que a raiva e o stress que nosso superego reprime dia após dia são liberados em explosões catárticas, Szifrón exibe sua melhor forma em dois segmentos apresentados no segundo quarto da projeção: se em “O Mais Forte” as consequências de uma briga de trânsito envolvendo o engomadinho Diego (Sbaraglia) e um brucutu (Donado) que este provoca em uma briga de estrada mostram-se imprevisíveis desde o início (e gags simples como o “recalculando” da voz do GPS de Diego e o impulso de seu adversário de começar a soprar ao ver-se vítima do fogo que ele mesmo criou funcionam como alívio cômico justamente por serem pontuais), em “Bombinha” é o sempre magnífico Ricardo Darín, que já se tornou o símbolo máximo do Cinema argentino, quem arranca o riso do espectador ao encarnar com perfeição o nervosismo crescente do engenheiro Simon, que, vítima da Lei de Murphy, vive seu Dia de Fúria a partir de um pequeno incidente envolvendo o guinchamento de seu carro (e meu único senão com este segmento se deve a seu desfecho tolinho e ideologicamente duvidoso).

Dialogando com facilidade com o grande público por lidar com situações que qualquer pessoa comum já vivenciou (quem nunca morreu de vontade de espancar um sujeito mal educado que o ofendeu? Ou de pagar uma traição na mesma moeda?), é uma pena que Relatos Selvagens despenque ladeira abaixo em sua segunda metade, tornando-se repetitivo (um problema comum em antologias que partem de um denominador comum muito específico) e inconsistente mesmo em seu tom, que vai da total seriedade em “A Proposta”, em que um magnata (Martínez) propõe a um empregado que este assuma a culpa por um crime cometido por seu filho, ao nonsense e frenético em “Até Que a Morte Nos Separe”, em que a noiva traída Romina (Rivas) transforma sua cerimônia de casamento em uma espécie de sessão de terapia in loco (e que, prolongando-se muito, mas muito mais que o necessário, só mantém-se minimamente interessante graças à atuação divertida da atriz, que vive sua personagem como uma bipolar ensandecida que apenas reage ao que ocorre ao seu redor obedecendo a seus instintos mais primitivos).

Dirigido por Szifrón e fotografado por Javier Julia de maneira minimalista e praticamente invisível (o que se revela uma estratégia apropriada por conferir unidade visual ao projeto), Relatos Selvagens é irregular como boa parte das antologias, mas também pontualmente divertido em suas tentativas de vingar o espectador de bem das agruras da vida adulta neste mundo muitas vezes burocrático, algumas outras entediante e sempre limitador de nossos impulsos mais animais.

(Relatos Salvajes, Argentina/Espanha, 2014). Escrito e dirigido por Damián Szifrón. Com Ricardo Darín, Oscar Martínez, Leonardo Sbaraglia, Erica Rivas, Rita Cortese, Julieta Zylberberg e Dario Grandinetti.

Confira também o vídeo de Larissa Padron para o filme na cobertura do Festival de Cannes.