O Idiota

Crítica: O Idiota – Mostra de SP

O Idiota

38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo #29

A história deste O Idiota escrito e dirigido por Yuriy Bykov pode não ser a mesma do livro homônimo escrito por Fiodor Dostoiévski (e publicado em 1869), mas suas implicações o são: tido como um tolo por todos ao seu redor, o encanador Dima Nikitin (Bystrov) se “infiltra” acidentalmente na cúpula da administração pública de sua pequena cidade e, confrontando suas ações mesquinhas e motivadas única e exclusivamente por interesses pessoais, acaba se revelando um sujeito muito mais lúcido e consciente que qualquer um daqueles homens e mulheres que, em tese, deveriam estar cuidando do bem-estar da população.

Tudo começa quando, em uma inspeção de rotina em um grande conjunto habitacional, Dima testemunha o estouro de um cano e descobre uma enorme rachadura que, atravessando a parede da edificação de fora para dentro e se estendendo do chão ao seu décimo nono andar, já fez o prédio se inclinar e pode derrubá-lo a qualquer momento. Angustiado com a possibilidade de se tornar cúmplice de uma tragédia, o sujeito sai de casa no meio da madrugada, invade a festa de aniversário da prefeita da cidade, a gananciosa e influente Nina (Surkova), e consegue uma reunião emergencial com os principais políticos da cidade – que, racionalizando a fortuna que realocar aquelas famílias poderá custar, preferem chamar o sujeito de louco e, a despeito da maior evidência que se poderia ter (a observação a olho nu do desastre iminente), insistem que não há motivo algum para preocupações.

Pobre, simples e de poucas palavras, Dima é a figura do proletário que, segundo a tradição do cinema russo de Eisenstein, confrontará a corrupção e o descaso que movem o sistema vigente – e Artem Bystrov, quase um sósia de Heath Ledger, interpreta o protagonista de maneira discreta e apropriadamente introspectiva. Enquanto isso, a espetacular Nataliya Surkova cria a figura mais intrigante do projeto, vivendo Nina como uma mulher de presença marcante e ar intimidador que, única em seu meio a questionar, ao menos por alguns minutos, a decisão criminosa que toma ao lado de sua equipe de governo, chegou ao exercitando sua capacidade de negociar privilégios, fazer concessões e firmar parcerias escusas, porém vantajosas.

E é justamente quando se concentra nas conversas e reuniões mantidas por Nina com seus vereadores, assessores e conselheiros que O Idiota se torna um filme extremamente revelador em sua crítica ao total apodrecimento moral do sistema político russo (um tema abordado também por seu conterrâneo Leviatã e que, em maior ou menor grau, não está muito longe de nenhuma democracia ocidental): corruptos e incompetentes, os administradores públicos da pequena cidade em que o longa se concentram não se envergonham de conversar abertamente entre si sobre o fato de terem embolsado o dinheiro destinado à reforma do conjunto habitacional que hoje está prestes a desabar, sobre as trocas de favores que fizeram entre si no passado (e que, em muitos casos, os levaram até ali) ou mesmo sobre sua indiferença diante das centenas de vidas que podem ser perdidas caso a tragédia se concretize.

Basta, aliás, ouvir o diálogo em que um personagem questiona o fato de haver crianças envolvidas e recebe um terrível: “E daí? O que você acha que elas se tornarão no futuro se continuarem vivas?” como resposta para concluir que o preconceito raivoso contra os mais pobres é exatamente o mesmo em qualquer canto do mundo; assim como são o machismo (é comum ouvir os personagens respondendo a acusações de mulheres com frases misóginas como: “Cala a sua boca, vadia!”) e, claro, a incompetência administrativa cujos resultados, muitas vezes, são sentidos apenas anos e mais anos depois – e assim como o prédio deste filme está prestes a desmoronar graças à forma precária com a qual foi mantido ao longo das décadas, a cidade de São Paulo encontra-se praticamente sem água graças a décadas de sucateamento da Sabesp, só para citar o exemplo mais próximo.

Eficiente por despertar discussões desse tipo, O Idiota mantém-se interessante até o seu desfecho, ajudando a compor a bela safra do Cinema russo presente nesta 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O Idiota (Durak, Rússia, 2014). Escrito e dirigido por Yuriy Bykov. Com Artyom Bystrov, Nataliya Surkova, Boris Nevzorov, Kirill Polukhin, Nina Antyukhova, Sergey Artsybashev, Pyotr Baracheev, Nikolay Bendera, Ivan Bred e Nikolay Butenin.