Se há algo em que os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne são mestres absolutos é na arte de extrair um realismo extremo de suas histórias, que, banais à primeira vista, constantemente servem de ponto de partida para uma série de reflexões sociais contemporâneas e relevantes. Em Dois Dias, Uma Noite não é diferente: utilizando uma premissa extremamente simples, a dupla de cineastas belgas comenta o fantasma do desemprego que tem aterrorizado não só países como Portugal, Espanha e Grécia (e é curioso que eu tenha assistido ao grego O Retorno de Antígona logo antes dessa sessão aqui na Mostra), mas também aqueles que nós, brasileiros, acreditamos estar testemunhando a crise europeia apenas como espectadores.
Sandra (Cotillard) acabou de voltar de um longo período de afastamento da fábrica em que trabalha devido a uma forte crise de depressão e descobre que seu chefe, M. Dumont (Sornin), percebendo que conseguiria dar conta do trabalho com os 16 funcionários restantes, ofereceu-lhes a oportunidade de escolher entre um bônus de mil euros e a permanência de sua ex-colega na equipe, obtendo uma vitória óbvia da primeira opção. Desesperada pela possibilidade de ficar desempregada e não ter mais dinheiro para somar com o do seu marido Manu (Rongione) para pagar o aluguel e alimentar os dois filhos pequenos, ela “recorre” alegando manipulação do resultado e consegue uma segunda votação, iniciando uma campanha de porta em porta de seus ex-colegas a fim de convencê-los a votar contra sua demissão.
Ambíguo já em seu nível mais superficial, o conflito central de Dois Dias, Uma Noite coloca em questão nossa tendência natural de lutar pelo que é bom para nossas próprias vidas sem nos preocuparmos com aqueles que tem ainda menos que nós (e mesmo quando estamos dispostos a ajudar os outros, o fazemos até o ponto em que nossa “caridade” começa a esbarrar em nossos próprios privilégios). Nesse sentido, o roteiro dos irmãos Dardenne não só se propõe a discutir a velha dicotomia entre a responsabilidade do governo de prover assistencialismo aos mais carentes e a chamada “meritocracia” que ignora o fato de que cada ser humano nasce com oportunidades diferentes, como também coloca um espelho diante do espectador ao fazê-lo tanto compreender a decisão egoísta dos colegas de Sandra quanto se revoltar ao ouvir um deles pedir para que ela “se coloque em sua situação” sem nem parar para pensar que ele também deveria se colocar na dela.
Mas as ambições do longa ainda vão além: transformando a campanha de Sandra em uma analogia a qualquer campanha política, o roteiro questiona diversos elementos de nossa democracia representativa, como o voto secreto (que se por um lado dificulta a manipulação de votos, por outro isenta os votantes de sua responsabilidade), o papel do voto nulo nas eleições diretas (que neste caso claramente contribuiria indiretamente com a demissão da protagonista) e, principalmente, o poder da mídia e dos detentores do poder na escolha de seus “subordinados” (perceba que, apesar de as atitudes e estratégias de M. Dumont e Sandra de tentarem convencer os funcionários a votar em uma ou outra alternativa serem teoricamente iguais, as possibilidades de sua eficiência são absurdamente injustas, já que o comprometimento com os interesses do patrão oferecem muito menos riscos que o compromisso com a representante proletária).
Fazendo ainda um retrato cru e extremamente tocante da depressão (a cena da tentativa de suicídio de Sandra é simplesmente brutal em sua banalidade), os irmãos Dardenne voltam a utilizar sua câmera na mão e sua abordagem à distância para extrair realismo das situações vistas na tela, sendo agraciados com mais uma atuação excepcional de Marion Cotillard, que, capaz de convencer como uma moça “do povo” como poucas atrizes do primeiro time do Cinema mundial, encarna Sandra como uma mulher desinteressada (um sintoma óbvio de sua depressão) e dona de olhos inchados e de um sorriso amarelo que parece lutar pela própria sobrevivência praticamente no piloto automático – e seus ombros curvados e expressões mínimas revelam uma dificuldade extrema até mesmo de sentir a dor de suas derrotas.
Em uma era de pleno emprego no Brasil, chega a ser curioso receber tantos filmes europeus que abordam a angústia de famílias cuja comida na mesa está sob risco – e como já é costume para quem acompanha o trabalho dos irmãos Dardenne, não é de se admirar que eles dirigem justamente o mais eficiente deles.
Confira também o comentário de Larissa Padron sobre o filme durante o Festival de Cannes
Dois Dias, Uma Noite (Deux Jours, Une Nuit, Bélgica/França, 2014). Escrito e dirigido por Jean-Pierre e Luc Dardenne. Com Marion Cotillard, Fabrizio Rongione, Catherine Salée, Batiste Sornin, Pili Groyne, Simon Caudry, Lara Persain, Alain Eloy, Myriem Akeddiou, Fabienne Sciascia e Anette Niro.