Há pouco, para aproveitar o feriado, me enfiei num voo e fui passear. Entrando no avião segui uma velha rotina: senta, espera um pouco, depois pede pro primeiro comissário que passar: “você me vê um extensor, por favor?”
É que quando se é gordo, o cinto de segurança não fecha e você precisa pedir por mais um pedacinho, que vem em vermelho vivo e com letras grandes impressas, como naquelas fitas que vemos em cenas de crime. Isso não me incomoda. Encontro até uma certa beleza em desavergonhadamente pedir pelo acessório, como se eu fosse um passageiro especial e ciente da minha condição. Mas o aperto do banco incomoda a mim e aos passageiros do lado, percebo. Descer a mesinha pra comer então, impossível com a minha barriga. Essas violências se repetem todo dia em diferentes lugares: é no ônibus, no cinema, na praça de alimentação do shopping, no vestiário da loja, na van do passeio da viagem.
Elenco de Eu Me Lembro (Foto: Rafael Nogueira)
Mas nesse final de semana pensaram na gente. Cheguei no teatro e no megafone anunciavam, depois de uma crítica ao que relatei, que havia no teatro um sofá e alguns pufes espalhados para tentar minimizar o desconforto dos corpos gordos que sentariam na plateia. Vários desses corpos estavam presentes para prestigiar corpos iguais no palco. Onze homens gordos em cena é a proposta do experimento Eu Me Lembro, dirigido por Anderson Nogueira. São rostos quase todos conhecidos porque, enquanto minoria, nos juntamos e frequentamos os mesmos espaços onde não somos apontados pelo nosso peso (e por um outro fenômeno característico da comunidade chamado “rebuceteio”).
Rafa Aguiar e Anderson Nogueira em Eu Me Lembro (Foto: Rafael Nogueira)
Esses homens não são atores e a maior parte deles nunca experienciou uma vivência em teatro, mas toparam por dez encontros se comprometer com suas memórias e compartilhar suas magoas com seus colegas. A plateia se emociona, se identifica e se reconhece enquanto os onze abrem seu coração. Não têm a presunção de se denominar peça ou espetáculo, mas com igual potência provocam reflexão em quem assiste.
A plateia majoritariamente composta por corpos gordos vai às lagrimas logo no começo enquanto, em um aquecimento, já nos deparamos com um dilema: torcer para que consigam um proposto objetivo incentivando aos berros para que não desistam ou desejar que encerrem logo o exercício. Em meio a partituras que mesclam jogos trabalhados durante o processo e ritmadas coreografias, observamos o corpo gordo em movimento e o movimento do corpo gordo, tão estranho aos espetáculos de dança, à publicidade das academias. Um a um, com notável delicadeza e poesia, acompanhamos as histórias desses homens. As cenas variam em momentos mais épicos, outras vezes mais dramáticos, mais performáticos, menos marcados, mais cômicos… Nessa mistura toda, porém, uma coisa é constante: a verdade de cada um. Nem por um momento o ritmo desce a mentira ou pormenorizamos o relato de quem leva ou compõe a cena.
Ao final, um corpo magro entra em cena. Trata-se de Arthur Viani, roteirista que amarrou os relatos dos encontros no espetáculo que assistimos. Sua cena vem ácida e irrita a facilidade e deboche com que realiza uma ação idealizada pelos outros corpos no inicio da apresentação. Tudo bem. É exatamente essa reflexão que ele quer e conquista com maestria. Depois, ainda, há um momento para que as experiências sejam trocadas entre artistas e plateia, e a comunhão consumida.
Arthur Viani em Eu Me Lembro (Foto: Rafael Nogueira)
Acredito que se equivoca quem acha que mais empatia é o que esse experimento pede. Trata-se na verdade de ocupar, sem pedir licença, todos os espaços negados à nós. Que tenha vida longa e reverbere para sempre em todo mundo que participou, no palco ou na plateia.
“Eu Me Lembro” faz mais duas apresentações: sábado (21h) e domingo (18h), no Teatro Paiol Cultural (R. Amaral Gurgel, 164 – Vila Buarque, São Paulo – SP, Metrô Santa Cecília) e os ingressos antecipados no Sympla custam R$ 25,00.