Em cartaz com Kobra – Auto retrato, a cineasta Lina Chamie, conhecida por filmes como A Via Láctea, São Silvestre e Santos de Todos os Gols, nos concedeu uma entrevista, Por e-mail, ela falou a respeito do desenvolvimento do documentário sobre o artista e também sobre algumas particularidades do seu ofício.
Cinema de Buteco: Como surgiu o projeto de retratar Kobra em um documentário?
Lina Chamie: O filme me veio de forma inesperada, por isso que eu digo que esse filme é verdadeiramente um presente, é um presente que eu ganhei. Aconteceu assim: em 2018, um jornalista, Edson Veiga, do Estadão, me mandou um e-mail perguntando se eu queria conhecer o Kobra. Eu respondi imediatamente que sim, porque sempre fui fã do Kobra, dos trabalhos dele. Enfim, essa coisa de eu ser paulistana, de eu gostar da cidade, das ruas, do espaço aberto, sempre muito atenta. Isso, inclusive, está em todos os meus filmes. O Kobra já era uma presença na minha vida, né, com seus murais aí espalhados pela cidade, então eu imediatamente disse ‘sim’ e fui a um encontro que era no escritório do Kobra, que era uma reunião, na verdade, e a proposta era eles precisavam de alguém que filmasse os murais que ele ia pintar em Nova Iorque. Um projeto bastante grande e ousado de pintar 18 murais, que ele de fato fez e eles queriam que uma cineasta registrasse esse projeto. Eu topei, claro, mas, de cara, coloquei algo que era, enfim, uma situação intransponível no meu modo de ver, que era: essas pinturas aconteceriam em dois meses. E em dois meses eu não tinha como levantar uma filmagem em Nova Iorque e aí, eu fiz uma contraproposta. Eu disse ‘Mas por que a gente não faz um filme sobre a sua vida, né, sobre a sua história?’ e ele topou. E esse é o filme que nós temos hoje, ‘Kobra – Auto Retrato’. Foi assim que começou o filme, foi assim que surgiu o filme na minha vida.
CdB: Kobra verbaliza a sua resistência em se expor. Este foi o seu maior desafio na direção do documentário?
LC:É, a direção de um filme tem muitos desafios, muitos desafios em diferentes categorias. Não sei se esse é o maior desafio pra mim nesse filme, talvez essa seja, aliás, ao contrário, a maior virtude do filme. Porque a minha proposta era entender quem ele é. Esse é o ponto de partida do filme, ele é um filme sobre a pessoa do Kobra pra gente, a partir daí, entender a obra do Kobra. E se o Kobra é um cara tímido, isso é algo que é importante estar no filme, não é? Como, de fato, está, que é a sua observação, ele verbaliza ‘Para mim, estar falando aqui é bastante difícil’, ele diz isso. Então, por um lado, não deixou de ser difícil eu fazer um filme querendo entender a alma de alguém, entender a sua essência, sendo esse alguém uma pessoa tímida, isto é, ele não verbalizaria para mim certas coisas. Mas, por outro lado, essa mesma timidez é a sua essência, então ela tem que estar no filme. É interessante a pergunta. Eu diria que sim e não, mas principalmente que, com ou sem esse desafio, a grande virtude, talvez, do filme seja mostrar essa pessoa como ela é, tímida. Tem algo que acontece enquanto eu estou fazendo o filme, que é eu tinha a proposta, e verbalizei pra ele, d’ele pintar um autorretrato durante a filmagem. E é isso que ele nega, ele diz ‘Não, eu não me sinto à vontade fazendo isso. Não me sinto merecedor, não me sinto bem fazendo isso, nunca fiz’, enfim, ele nega esse pedido. E essa negativa é justamente a expressão, não só da sua timidez, mas a expressão do próprio filme, que ganhou o título depois de ‘Auto Retrato’ porque justamente o filme é o autorretrato. O autorretrato que ele não quis fazer para o filme é o próprio filme e cumpre essa função talvez até com mais potência. O autorretrato no sentido de um mergulho na alma da pessoa, de colocar ali na tela quem ele é. Então eu acho que é importante isso para o filme, entender que a gente está conhecendo uma pessoa tímida através dela mesma. O filme acaba sendo ‘Kobra – Auto Retrato’, esse é o autorretrato. E tem uma frase importante que ele diz, que é ‘O meu autorretrato está nas minhas obras. As minhas obras são o meu autorretrato’ e o filme, então, cumpre essa função. Ele revela quem ele é e mostra as obras dele também. Então a resposta é o que seria a maior dificuldade acaba sendo a maior virtude do filme, e por virtude eu quero dizer verdade do filme. Esse é o personagem como ele é”
CdB: Durante o processo de concepção do documentário, foi necessário e/ou possível separar cineasta e admiradora do trabalho do artista?
LC: Acho que nem é necessário separar, acho que é impossível separar. Porque todo filme que a gente dirige, todo filme que a gente faz é sempre uma expressão de quem a gente é. E quem a gente é tem a ver com a vida vivida, com nossos sentimentos, com a nossa percepção do mundo. Então, essa separação se faz impossível. Isso não quer dizer que você faça um filme em cima das suas convicções. Ainda mais este filme, que não é sobre a minha história, é sobre a história de outra pessoa, do Kobra. Então, ao fazer o filme, o meu compromisso é com o Kobra, ele não é comigo. É, em primeiro lugar, com o Kobra. Quando eu quero dizer que não é comigo, é o filme não está compromissado, em primeiro lugar, com a minha visão sobre a história dele, esta zona onde poderia se misturar admiração. O filme está compromissado em mostrar quem ele é e qual é a sua história. E é nesse registrado que eu trabalhei o tempo todo, buscando a verdade dele. Acho que essa é a forma mais verdadeira de trabalhar num documentário, buscar o que está perante os seus olhos, não o que está no seu desejo ou na sua convicção. O que é que está na sua frente. Eu sempre digo que o documentário é um belíssimo exercício de ouvir. Ver e ouvir e não necessariamente falar. A sua fala vem em segundo plano, ela vem em função do que você vê e do que você ouve, e foi assim que eu trabalhei nesse filme. Sempre olhando muito diretamente para o Kobra para entendê-lo e traduzi-lo de forma veraz no filme. Assim sendo, a minha admiração permanece, eu posso dizer que ela só cresceu com esse contato que tivemos. Eu aprendi muito sobre ele, entendi ele muito melhor e passei a admirá-lo ainda mais.
CdB: Você é uma cineasta que transita com tranquilidade pela ficção e pelo documentário. Como você escolhe os seus projetos ou temas que quer abordar em tela?
LC: A minha história começa como diretora de ficção, eu acho que essa é a minha característica principal. Eu sempre fiz ficção, aprendi a fazer cinema fazendo ficção. Mas num dado momento, eu recebi um convite para fazer um documentário e aí, eu comecei a fazer documentários e eu acho que é muito salutar para um diretor transitar entre esses dois gêneros. Eu acho que o documentário ensina muito sobre a ficção e vice-versa, então é algo que eu prezo na minha carreira, poder fazer ficção e poder fazer documentário. Interessantemente, muitas vezes, você não escolhe o tema, o tema te escolhe. Eu gosto de pensar dessa forma. Na verdade, escolher um tema é ser escolhido por um tema e aí, você segue pra desenvolver um projeto sobre aquele tema. Eu tenho essa situação com alguns filmes, mas há também convites, às vezes, pra você fazer um filme sobre um determinado tema. E aí, dependendo do tema, você pode negar, se é uma coisa que você não concorda ou não acha que está no escopo dos seus interesses, você pode não fazer, mas de um modo geral, os temas vêm a você por uma razão maior. Muitas vezes, você mesma traz o tema pra você e, outras vezes, vem um tema porque as pessoas conhecem a sua carreira, o seu olhar, então ele tem a ver com você um pouquinho mais. Mas essa questão dos temas é interessante. A gente é, na maior parte das vezes, escolhido por temas, inclusive na ficção. Porque a ficção também é uma busca temática. São os temas que tem importam que acabam prevalecendo.
Um pequeno adendo a essa pergunta sobre ficção e documentário. Não está exatamente na pergunta, mas eu gostaria de dizer é que a minha experiência com o documentário, se a gente olhar pra linguagem dos filmes, a gente percebe na maioria deles que está impregnada de ficção. O que eu quero dizer é a minha linguagem se dá de forma muito próxima, a maneira como eu construo um filme, como eu monto um filme, como eu filmo um filme tem muito a ver com ficção. Dessa forma, alguns documentários meus são híbridos. Eles têm muito de ficção na linguagem e eu acho que isso é porque o meu aprendizado todo e o meu DNA, como eu disse, é basicamente ficção.
CdB: Acabamos de passar por uma eleição protagonizada por candidatos antagônicos. Quais artistas você acompanha que carregam uma voz potente quanto a importância do posicionamento político?
LC: É, acabamos de passar por uma eleição polarizada, sim, mas sobretudo, acabamos de passar por quatro anos de absoluto obscurantismo e desconstrução, destruição de políticas públicas, um imenso retrocesso. Estamos ainda passando por isso. Nesse sentido, eu acho que toda arte é, por natureza, subversiva. No sentido de que toda arte é transformadora e, portanto, toda arte é política, mesmo quando não explicitamente política. Eu quero dizer é, por exemplo, em relação ao cinema. Nem sempre um filme precisa ter um tema político pra ser político. Às vezes, ele é até mais potente quando a política surge do indivíduo, das questões ali colocadas e como elas nos tocam. Isso é sempre um exercício de posicionamento político. Em relação às eleições, claro, vários artistas se colocaram abertamente, generosamente, até pra conscientizar as pessoas, em função do público que eles têm, e eu tenho imensa admiração por essas pessoas da linha de frente que, enfim, fazem o seu trabalho para além do seu trabalho. Até com consequências, às vezes, drásticas. Um artista que sempre foi político e sempre esteve também aqui durante as eleições presente, um artista de magnitude imensurável, o Chico Buarque, por exemplo. Um artista que todo o seu trabalho vê um país, em diferentes momentos, é claro, mas sempre preocupado com o país e com o rumo do país e com uma visão política. E tantos outros atores também se colocaram e, enfim, têm consciência da importância do seu posicionamento. Lembro alguns atores, o Caio Blat, o meu amigo Marco Ricca, a Letícia Sabatella. Mas acho que, de fato, o objeto de arte, inclusive, transcende e carrega consigo sempre um olhar político. E aí, eu volto ao Kobra, que na sua obra tem uma visão de mundo, que não deixa de ser uma voz política e extremamente democrática, por estar na rua, uma voz que chega a muita gente. O Kobra defende alguns temas muito importantes. A preservação do meio-ambiente, dos povos indígenas, o Kobra fala veementemente contra o racismo, contra as armas, é um ativista da paz. A paz, um item tão importante no momento em que a violência se tornou modus operandi, se tornou metodologia, inclusive, política, enfim. Então eu acho que em diferentes formas, diferentes artistas e sempre objeto de arte são políticos e que, sim, é importante ter consciência política do seu entorno. Não necessariamente na voz direta enquanto ativismo, mas sempre, sempre, sempre na sua obra. Nem todos os artistas são ativistas, mas todos os artistas têm voz política, inexoravelmente.