Por Alexandre Ferraz, colaboração para o Cinema de Buteco
O Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR), em sua mostra Bright Future dedicada a novos talentos, trouxe a première do filme brasileiro A Felicidade das Coisas, dirigido por Thais Fujinaga. É o primeiro longa-metragem da diretora e roteirista premiada por curtas como “L” (2011) e “Os Irmãos Mai” (2013).
O filme, que tem crítica aqui no Cinema de Buteco, acompanha Paula (Patricia Saravy), uma mulher grávida que lida com problemas para a instalação de uma nova piscina em sua casa de veraneio. Sem a presença do marido, Paula conta apenas com a ajuda de sua mãe para cuidar da filha pequena e do filho pré-adolescente, que passa os dias olhando para um clube particular vizinho do qual eles não fazem parte. Magali Biff, Messias Gois, e Lavinia Castelari completam o elenco da produção, que ainda não tem previsão de estreia no Brasil.
Em entrevista exclusiva para o Cinema de Buteco, Thais Fujinaga comenta sobre a produção, os temas tratados, e sobre os paralelos entre “A Felicidade das Coisas” e sua vida pessoal.
Confira a seguir a entrevista completa e exclusiva!
Cinema de Buteco: Como foi o festival para você e para o filme?
Thais Fujinaga: Foi bem estranha essa situação de estrear o filme nessas circunstâncias. O festival fez todos os esforços para aproximar a gente do público. Mas a realidade é que a pandemia atrapalha muito, mesmo sendo [formato] híbrido. […] A gente teve dois Q&As ao vivo depois das sessões presenciais, que foram as de quinta [03/06] e sexta [04/06], só que foram aquelas sessões que as pessoas precisavam pagar para fazer um teste para poder ir ao cinema, então tinha pouquíssima gente. Mas a conversa foi muito legal. E daí parece que na sessão de sábado [05/06] vendeu todos os ingressos e domingo [06/06] quase lotou, dentro da capacidade reduzida. […] Então eu sei que bastante gente viu, pessoas que estavam na Holanda. […] Na verdade, foi bem melancólico para mim, na quinta-feira eu estava um pouco triste de saber que o filme estava estreando e eu, os produtores e a equipe no geral estão distantes assim. Mas enfim, foi a estreia que deu para eles organizarem e eu sou muito grata ao festival, que realmente se esforçou muito para fazer esse encontro do filme com o público acontecer da melhor maneira.
CdB: O que te fez escolher essa história para ser a primeira experiência dirigindo um longa-metragem?
TF: Na verdade, eu tenho um projeto chamado “O Filho Plantado”, que foi o primeiro longa que eu desenvolvi na época achando que seria o primeiro que eu iria dirigir. É um projeto que ganhou alguns editais de desenvolvimento, mas “A Felicidade das Coisas” acabou passando um pouco na frente por conta de um encontro muito feliz que eu tive com o núcleo criativo da Filmes de Plástico, que é a produtora do filme. Acho que foi em 2017 que eu fui convidada para esse núcleo da Filmes de Plástico para apresentar um projeto para eles mandarem para um edital. A gente ganhou o edital e nesse núcleo eu comecei a desenvolver uma história que eu já tinha um pouco na cabeça no formato de curta-metragem. Ele começou como uma ideia de curta, que eu nunca levei adiante porque era um curta difícil de fazer, na praia, longe. E daí eu levei essa sinopse para o núcleo criativo e, a partir daí, eu fui desenvolvendo.
[…] E sobre a ideia, eu sempre quis fazer algo lá nessa cidade, Caraguatatuba, que é uma cidade onde eu passei boa parte da minha infância. […] Na verdade, eu fui concebida em Caraguatatuba, a minha mãe ficou grávida de mim na Ilha Morena, que é o clube do filme. […] Então eu tenho uma relação muito forte com essa cidade. Até hoje a gente tem casa lá, a casa que aparece no filme é da minha família, onde a gente passava férias e feriados. […] Então eu passava muito tempo lá [no clube]. E como eu tinha casa fora do clube, eu fiquei muito amiga de várias pessoas de lá, que eu só convivia durante 3 meses e depois voltava para São Paulo. Então eu vivi muitas coisas lá, de amizades, de descobertas. E eu sempre quis voltar para lá para fazer um filme que mostrasse um pouco esses espaços, que eu acho que tem uma peculiaridade. A própria Ilha Morena é uma ilha fluvial, que foi construída artificialmente. […] Eu acho que [a ideia] nasceu da vontade de pensar uma história a partir desses espaços. Inclusive, espaços limítrofes assim, porque, por exemplo, a ilha é acessada unicamente através de uma ponte ou através de algum tipo de barco. Mas ela tem essa ponte que liga o continente a ela e que poucas pessoas podem atravessar, pelo menos na época que eu era menor tinha muito isso. Esses amigos que eu fiz e que eram moradores da região, muitos deles não eram sócios do clube e daí tinha essa estranheza deles serem alguém dali que não podiam entrar. O clube era um lugar reservado para os seus associados, hoje em dia não é mais assim, você pode pagar a diária e é barato. Eu acho que a primeira faísca foi “e se eu fizesse um filme aqui, explorando esse dentro e fora do clube?” E a partir disso, essa relação de quem está dentro e quem está fora, quem pode e quem não pode, quem é da cidade e quem não é da cidade. E daí depois eu fui pensando qual história seria essa, quem seriam os personagens e tudo o mais. […] Quando eu escrevi o roteiro, eu escrevi pensando em espaços todos existentes, inclusive o parque de diversão da cidade, que existe desde que eu era criança. Então tudo dependia dessas locações, se a produção não conseguisse fechar essas locações, se não deixassem a gente filmar, a única locação que a gente ia ter de fato era a casa. Foi tudo pensado em torno delas.
CdB: Por quê a escolha de fazer a piscina como um grande objeto de desejo enquanto eles estão tão perto do mar e de um rio? Teria a ver com a ideia do desejo da posse e da propriedade privada?
TF: Sim, total. É uma espécie de tema que também passa pela história e que para mim é muito importante, que é essa questão justamente da propriedade. Eu, pensando sempre nessas memórias de infância, – e que talvez hoje não seja tão assim – eu lembro que eu, até pouco tempo atrás, sempre ouvia e percebia que essa coisa de ter uma casa na praia é um símbolo de status social muito perseguido pela classe média brasileira. […] E a ideia era mostrar essa família, que é uma família de classe média, mas uma classe média um pouco mais baixa, que finalmente consegue, provavelmente com muito esforço e muita economia e contraindo dívidas, comprar uma casa na praia, realizar esse desejo. Só que, ao mesmo tempo, é nessa praia que não é a melhor praia do litoral, não é a mais bem localizada, é uma casa que faz divisa com um clube que parece muito atrativo para quem está de fora. Então essa ideia da piscina era a ideia de trabalhar essa questão dos desejos de consumo que a gente tem enquanto indivíduo, mas também enquanto sociedade, porque você ter uma casa na praia já é você alcançar algo e se sentir alguém diferenciado. E depois de você ter uma casa na praia, ter uma casa na praia com uma piscina é um passo a mais. Então é um pouco sobre isso, sobre a gente querer coisas mas ao mesmo tempo nunca estar satisfeito. […] E a ideia não era julgar essas pessoas por quererem as coisas, porque a gente vive numa sociedade que, justamente, é capitalista, ela funciona a partir da lógica de criar desejos de consumo nas pessoas. E é um pouco o que o filme mostra. A piscina era importante por ser esse símbolo de status, ao mesmo tempo que eu acho visualmente muito impactante.
[…] Eu acho que tem sim essa questão da posse. […] E tem a ver também com como o filme mostra essa questão dos limites, porque o clube é uma propriedade privada que só pessoas que são associadas podem entrar. E tem essas situações de invasão. A Paula acha que o pescador invade a propriedade dela, o filho dela invade o clube. […] Essa questão de até onde você pode ir nos seus desejos.
“Quando parecia que estava indo tudo muito bem, veio essa avalanche que retrocedeu anos.”
CdB: Ao assistir o longa, pode-se perceber uma série de comentários, não só esse sobre a posse, mas outros comentários de âmbito social. Como foi trabalhar esses temas a partir desses personagens e universo que você tinha no roteiro?
TF: Quando eu pensei a primeira vez nessa história como um curta, era a história de uma mãe que compra essa casa na praia e quer fazer uma piscina, e as coisas acabavam dando errado. Mas, como a gente estava/está vivendo no Brasil o que a gente está vivendo, outras camadas foram surgindo e se tornando importantes para mim ao longo do processo. Por exemplo, essa questão: por quê é essa família que eu quero retratar? Essa família de uma classe média ascendente, que começou a ter um pouquinho de reserva de dinheiro durante os governos petistas, do Lula e depois da Dilma, começou a ganhar algum dinheiro para investir em sonhos, em prazer, e não só em sobreviver. […] Isso começou lá em 2016 e a gente filmou em 2019, que, para o cinema e para a nossa sociedade, foi um ano um pouco desesperançoso. De lá, 2016/17, até o momento da filmagem, foi se tornando muito mais importante para mim tentar mostrar que essa família que a gente está mostrando representa um pouco uma coletividade do Brasil. Assim, o filme não é alegórico e eu não quero representar e nem carregar verdade nenhuma, é uma história específica, um recorte que a gente criou. Mas eu digo para mim, eu via a família como um retrato um pouco nosso, meu, de um núcleo, vamos dizer assim, que quase chegou lá. Eles quase alcançaram essa piscina, faltou muito pouco para eles terem essa piscina. Enquanto eu filmava, pensando que era meu primeiro longa, que demorou tanto, – meu primeiro curta é de 2008 – há muito tempo que eu tenho esse desejo de realizar esse passo profissional, de fazer um primeiro longa ou de ter uma estabilidade financeira. E parece que quando a gente estava muito bem, que estava tudo encaminhando – isso falando só de cinema, não do Brasil em geral – vários colegas fazendo filmes, filmes sendo incentivados em diversas partes do Brasil, descentralizando a produção, quando parecia que estava indo tudo muito bem, veio essa avalanche que retrocedeu anos. […] Nos momentos difíceis da filmagem, eu falava “o filme é a minha piscina”. Fazer esse filme é esse desafio de fazer uma coisa enorme e que talvez, se não der certo, eu não vou ter uma segunda chance. Porque é isso, eu achava que depois do primeiro [filme] a felicidade só ia aumentar, mas não é assim. A gente aprendeu assim nesses últimos anos aqui no Brasil. Houve essa evolução da minha visão das personagens a partir do que a gente estava vivendo no Brasil. Inclusive, é um detalhe que eu fiz muita questão de colocar, o filme se passa em 2015. […] Porque essa família, no Brasil de hoje, nem compraria a casa na praia, muito menos construiria uma piscina. Esse sonho foi possível lá atrás, só que ele encontrou um teto de vidro.
E um outro aspecto de discussão que eu acho importante que o filme traz junto com a sua história é a questão do lugar dessa mulher, ou das mulheres no geral e dos homens também, dentro da sociedade, mas isso visto a partir do núcleo familiar. Como que funcionam as dinâmicas dentro das famílias em relação à violência, à desejos diferentes de convivência. A ideia da gente ter uma mãe grávida do terceiro filho, um pouco em crise com a sua maternidade, que tem um marido que é ausente no filme completamente, que nunca vem para ajudar. Em contraste com o menino, que é o co-protagonista do filme, que está entrando na adolescência, que não enxerga sua mãe e não consegue ver o seu lugar dentro daquela família liderada por mulheres. Isso é um tema importante de discutir para mim também.
“Eu achei que era mais seguro para mim, em vez de decupar demais, eu fazer esses planos médios e abertos e deixar a cena transcorrer, pensar na mise-en-scène interna da cena, de movimentos de personagem.”
CdB: Quais foram suas principais referências cinematográficas e como foi trabalhá-las em “A Felicidade das Coisas”?
TF: Eu não quis, inclusive para a equipe, passar nenhum filme ou cineasta específico, porque eu tinha muito medo de, como era meu primeiro longa, se eu me apegasse em uma referência única, de eu acabar copiando muito. Mas, com certeza, para mim tem uma referência que é a Lucrécia Martel, que é uma referência desde que eu vi o primeiro filme dela, “O Pântano”. Tem elementos que não são de direção na verdade, porque eu acho que eu nem tentei, justamente porque eu acho que tematicamente talvez fosse muito próximo. Essa questão da piscina, que é algo muito recorrente nas obras dela, um olhar muito próximo para um núcleo familiar, famílias problemáticas, e o fato de ter um entorno muito povoado. […] Tudo isso eu acho que já tinha uma relação próxima, então eu quis me afastar um pouco na direção. […] Na verdade, a Lucrécia é uma referência que está sempre por aqui. Eu absorvi já, eu não preciso ver um filme dela para falar “vou fazer desse jeito”.
Antes de começar a decupar [o roteiro de “A Felicidade das Coisas”], eu lembro que eu comecei a ler o livro “Figuras Traçadas na Luz”, do David Bordwell, um americano que escreve bastante sobre cinema e direção, em que ele analisa 4 cineastas e um deles é o Hou Hsiau-Hsien, o cineasta taiwanês. O filme tem muitos planos sequência com a câmera parada, porque era o jeito que foi possível filmar com o tempo que a gente tinha. Então eu achei que era mais seguro para mim, em vez de decupar demais, eu fazer esses planos médios e abertos e deixar a cena transcorrer, pensar na mise-en-scène interna da cena, de movimentos de personagem. E lendo o livro, eu fiquei um pouco encantada – eu já gostava muito dos filmes – e lendo a análise do autor do livro sobre os filmes do Hou Hsiau-Hsien, eu pensava: “Eu quero fazer isso”. Essa ideia de construir planos dentro do quadro, primeiro plano, plano de fundo, entra e sai. Acho que ele foi quem eu mais me inspirei. […] Teve um momento, lendo esse livro, que eu quis um pouco decupar através de planos sequência me inspirando no Hou Hsiau-Hsien, arriscando isso, embora eu tenha consciência de que o resultado é muito diferente. Mas foi o que eu pensei e trouxe imagens de referência para a equipe.
CdB: Então as escolhas de linguagem do filme foram bastante moldadas pela realidade da produção?
TF: Na verdade, a gente teve 6 semanas para filmar. Mas era um filme, que embora talvez não pareça, muito difícil de filmar na praia, de filmar no rio, e era um roteiro longo, porque muitas cenas caíram na montagem. É um filme que tem 80 e poucos minutos, mas era um roteiro que previa ter talvez quase 2 horas, e que na montagem a gente foi tirando por várias razões. Mas era um roteiro maior, então foi difícil, era corrido. Tinha criança e muitos não-atores e, para mim, era muito importante essa questão da atuação. A gente filmava muitos takes até chegar no resultado que a gente achava ideal. Foi um pouco sim, pensando na nossa realidade, de qual seria a melhor forma de realizar esse filme para a gente não enfrentar problemas assim, de eu fazer uma decupagem mirabolante e depois não conseguir fazer tudo e não dar atenção para o que era importante para mim, que era a atuação.