Por Alexandre Ferraz, colaboração para o Cinema de Buteco
AINDA INÉDITO NO BRASIL, o documentário Lutar, Lutar, Lutar, sobre o Clube Atlético Mineiro, participou da edição de Junho do Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR), que terminou oficialmente no último dia 9 ao comemorar os seus 50 anos. O filme, que conta com crítica no IGTV do Cinema de Buteco, é dirigido pelos mineiros Sérgio Borges e Helvécio Marins Jr. Os dois premiados diretores participaram do festival em outras ocasiões, com “O Céu Sobre Os Ombros”, dirigido por Sérgio e produzido por Helvécio, na edição de 2011, e “Girimunho”, dirigido por Helvécio juntamente com Clarissa Campolina, em 2012.
O longa perpassa toda a história do time, desde sua fundação até a grande conquista da Libertadores em 2013, com foco nas injustiças sofridas pelo time historicamente e na paixão da torcida. Conta com depoimentos de ídolos, como Reinaldo e Dadá Maravilha, dirigentes, jornalistas e torcedores. Foi bem recebido em Roterdã – ficou em sétimo lugar no ranking do público, que contava com mais de 40 filmes. Inclusive, o prêmio da audiência foi para outro documentário futebolístico, “My Name Is Francesco Totti”, sobre a vida e carreira do ídolo italiano.
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Durante o festival, o Cinema de Buteco entrevistou Sérgio Borges, que nos contou a surpresa de ser selecionado por curadorias de festivais importantes pelo mundo, como de Roterdã e do BAFICI, da Argentina, onde o filme estreou: “Não é totalmente um filme autoral e não é totalmente um filme de entretenimento, digamos assim. Claro que esse circuito de festivais tem um interesse por coisas que são pop. Este talvez seja o filme mais pop ou que vai ter mais interesse dentro dos filmes que eu já realizei enquanto diretor. Mas, por outro lado, também não é um filme completamente de entretenimento. Está sendo curioso para mim também perceber a trajetória deste filme e entender onde ele pode ir.”
Leia abaixo a entrevista completa e exclusiva
Cinema de Buteco: Como foi esse festival para vocês?
Sérgio Borges: O Festival de Roterdã está entre os 10 maiores festivais do mundo, então ter sido selecionado é uma alegria muito grande. Eu participei do festival 10 anos atrás, com o meu primeiro longa, e é legal esse ciclo, voltar no 50º aniversário. A gente exibiu o filme até agora na Argentina e em Roterdã, e é legal também porque são países que gostam de futebol, então as coisas parecem se encaixar. A gente fica um pouco triste porque, por conta da pandemia, tanto em Buenos Aires quanto em Roterdã, a gente não conseguiu acompanhar o filme. […] Por um lado, é uma pena o filme estar estreando nesse contexto, mas todas as coisas que estão rolando no mundo estão acontecendo nesse contexto, então faz parte. É um mix de sentimentos, mas no geral é de gratidão, a gente está muito feliz com essas estreias internacionais do filme.
CdB: Por se tratar de um assunto bem específico, o Atlético Mineiro, que nem todos ao redor do mundo conhecem, qual a noção que vocês têm sobre a recepção do filme?
SB: A gente ainda não teve a experiência de assistir ao filme numa sala com público, então a minha impressão de como o filme está repercutindo vem muito pelos testes que a gente fez mostrando para amigos e pessoas conhecidas e pelo retorno das curadorias de festival. Esse é um filme que a gente também considerava um filme específico, um filme para a torcida do Atlético principalmente. Talvez não necessariamente o público em geral que gosta de cinema iria gostar do filme e, mesmo o público que gosta de futebol mas não é atleticano, a gente também não sabe exatamente como vai ser. Mas a impressão que estamos tendo, pelo filme estar sendo selecionado por curadorias importantes, é que ele consegue interessar e capturar mesmo as pessoas que não são atleticanas e que não necessariamente são apaixonadas por futebol. Eu acho que isso tem a ver tanto com o fato de que acaba sendo um filme muito emocionante – o futebol é um jogo que lida com a emoção, com o ganho, com a perda, com a frustração – e ele é filmado muito de perto do torcedor, de uma maneira muito próxima. Então, eu acho que essas imagens e sons que são muito próximos do torcedor apaixonado acabam contagiando quem vê. E eu tenho a impressão também que o filme consegue falar mais do que só do Atlético e falar sobre a paixão do torcedor de uma maneira geral. E mais do que uma paixão do torcedor, eu acho que ele também consegue refletir coisas da vida que transcendem o futebol, porque ele também vai falar de injustiça, redenção, sofrimento, alegria. Quando o filme é exibido fora do país, eu fico pensando que, de uma certa maneira, os altos e baixos que o torcedor e o time atleticano passam podem também representar uma metáfora do povo brasileiro, no seu cotidiano, tendo que lutar para sobreviver, querendo um futuro melhor, querendo ser redimido de alguma forma.
“Antes o mundo tivesse cooperação, e não competição.”
CdB: O filme tem o olhar de torcedor do Atlético Mineiro, mas é um documentário, em que interessa contar a história dos acontecimentos. Como isso foi pensado?
SB: Eu acho que, no caso de um filme de futebol, a gente entendeu que tinha uma licença para ser parcial. O filme não explica com uma cartela que a gente é parcial, mas eu acho que está subentendido num filme de dois torcedores fanáticos pelo seu time. […] A gente fala na nossa sinopse que é um filme feito sobre a torcida mais apaixonada do mundo. Essa é uma frase dita por muitas das torcidas: “a nossa torcida é a mais apaixonada.” A gente está fazendo uma brincadeira, uma provocação com isso também, na medida que a gente exalta o nosso time como a torcida mais incrível. A gente sabe que não é bem assim. Mas dentro da mística do que é a brincadeira de ser torcedor, talvez do lado saudável dessa história, que é um esporte. Seria um sonho se a nossa competitividade e as nossas disputas por poder ou por quem é o melhor fossem sintetizadas nesses jogos dentro de um esporte, por exemplo, que talvez seja uma metáfora dessa coisa que tem dentro do ser humano que é a competitividade. Mas obviamente isso não está só no futebol, isso está nas nossas ações no mundo. Muitas vezes a competição é muito prejudicial à vida humana. Antes o mundo tivesse cooperação e não competição. E se essa energia, que talvez seja uma energia que faz parte da experiência humana, do DNA do corpo humano, se ela estivesse só nessas representações sociais nos campos de futebol, seria muito mais legal. Infelizmente, não é, e na vida real, no futebol, essa competição também é muito violenta, ela gera mortes, ela gera uma série de coisas nas disputas de torcida. Mas para a gente tem esse lado também de que é uma representação, uma grande cena, é um grande teatro numa grande arena para muitos espectadores essa história do futebol.
[…] A gente também lida com essa relação com a verdade dos fatos ou com a impressão dos outros torcedores tentando que seja de uma maneira lúdica. Obviamente a gente vai falar que o Flamengo foi campeão mundial roubado ou vai tecer certas críticas à torcida do Cruzeiro, mas a gente também tentou fazer isso dentro de um certo lastro de respeito e de não ser apelativo demais. Não sei se a gente conseguiu, mas esse foi o meu desejo, pelo menos.
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“A gente não sabe como é que os torcedores vão reagir ao filme.”
CdB: Como surgiu esse projeto? A motivação foi puramente essa paixão pelo Galo?
SB: Esse projeto começou, na verdade, em 2010, e a ideia era bem diferente do projeto que ele terminou. Eu queria fazer um filme 10 anos atrás à lá Frederick Wiseman, de entrar em uma instituição, no caso um time de futebol, que era o meu time, e tentar filmar os bastidores de uma equipe, como funcionam essas engrenagens do futebol. A relação entre jogadores, técnicos, reservas, profissionais de base e dirigentes. É um lugar muito paradoxal esse do futebol, que tem muito dinheiro envolvido, ao mesmo tempo tem pessoas e profissionais que vieram de lugares muito pobres, como são essas hierarquias […]. Enfim, uma série de questões que eram muito mais sociais do que da paixão do torcedor, que era uma investigação desses aspectos. Mas, quando eu tentei me aproximar do clube para tentar fazer isso, as portas estavam fechadas. Eu acho que o futebol envolve um poder muito grande, muito dinheiro, tem muita coisa envolvida para se abrirem os bastidores assim. E quando eu vi que esse projeto não estava conseguindo ser realizado foi mais ou menos quando o Helvécio [Marins Jr.] me propôs: “Quem sabe, vamos virar a chave dessa ideia e construir uma outra ideia com isso, não perder esse projeto aprovado, vamos fazer um filme sobre a história do Atlético, sobre a paixão do torcedor. Se você topar mudar essa ideia, vamos juntos, eu vou tentar ajudar a viabilizar isso dentro do Atlético.” E assim foi feito.
Nessa premissa de fazer um filme contando a história e as glórias do Atlético, exaltando seus ídolos, aí o clube se interessou e abriu as portas para a gente. Em nenhum momento o clube quis se envolver financeiramente. E a gente começou esse projeto com esse approach mais direto em 2013, depois do time campeão da Libertadores, e ele foi filmado em 2014. Então, nosso contato com o clube foi de 2013 até agora 2020, 2021.
Mesmo dentro do clube, essa versão que a gente fez, houve uma série de críticas da diretoria do Atlético, na época que a gente mostrou esse filme mais finalizado, já agora em 2019/2020, de que talvez não fosse a melhor visão para se falar do Atlético: “que essa parecia uma visão derrotista, que a gente tem que falar das vitórias”. Então, por mais que a gente tenha conseguido fazer um filme porque era para exaltar as glórias e conquistas do Atlético, acho que a gente faz isso, e a maior exaltação que a gente pode fazer é da paixão desse torcedor independente de vitórias e derrotas. E a nossa visão é essa, de quem nasceu nos anos 70 e conviveu com tudo isso, de que essas derrotas e injustiças fazem muito parte da história do time. É um filme que foi criticado pela própria diretoria do clube. Em um certo momento, seria o filme oficial do Atlético, aprovado pela própria diretoria, e ele acabou deixando de ser. É licenciado pelo clube, que está dando o aval de ser feito, mas deixou de ser o filme oficial do Atlético, porque a gente também não quis abrir mão de contar essa história. A gente não sabe como é que os torcedores vão reagir ao filme. […] A gente está dando a nossa versão da história do Atlético.
CdB: É um filme que toca bem forte na relação entre o futebol e a política, principalmente com a história do Reinaldo e a consciência política que ele tomou. E agora a gente está num momento bem curioso no Brasil, que é esta realização da Copa América em meio a uma pandemia. Qual sua opinião sobre isso?
SB: Esse gesto do Reinaldo no fim dos anos 70, de confrontar o governo na época, um atleta de futebol ter uma participação política, mesmo que através de um símbolo (o punho cerrado que ele fazia), se hoje em dia é uma novidade a gente pensar que jogadores como o Casemiro ou o Neymar, que os jogadores que estão na Europa estão fazendo um movimento que tem uma conotação política também de alguma forma, isso nos anos 70 eu acho que era ainda mais difícil. Tudo bem que a gente teve a Democracia Corintiana nos anos 80, mas, se a gente for pensar, essa abordagem política do Reinaldo era até anterior à Democracia Corintiana, ou contemporânea. É um gesto muito grande de se ter feito 40 anos atrás.
De uma certa maneira, a impressão que eu tenho do mundo do futebol – e o futebol não é homogêneo, é muito heterogêneo – é que normalmente os valores dos jogadores, muitos jogam na Europa e já ganharam muita grana, eu sinto que existe uma proximidade maior com o liberalismo do que com as esquerdas dentro do futebol. E o sistema de poder, de hierarquias e de dinheiro, grandes emissoras envolvidas, enfim. Então não deixa de ser surpreendente para mim que os jogadores estejam se manifestando sobre isso. É claro que a Copa América vai ser a quarta Copa América em seis anos, parece não fazer sentido. Esse torneio, antes de estar no meio da pandemia e de ser mudado para o Brasil, ele já é um torneio caça níquel de cara. Os jogadores no meio dessa maratona toda que está acontecendo por causa da Covid ainda terem que estar um mês no meio da Copa América, viajando de país em país no meio dessa loucura toda, eu acho que é muito absurdo. […] Então eu acho que os jogadores, e aí é um julgamento meu, antes de fazer um gesto que é político, eu acho que eles estão também defendendo eles mesmos de um calendário exaustivo e de estarem sendo colocados num lugar muito difícil. […] E estão colocando eles no meio de uma disputa política também. Acho que, se eles não querem se comprometer, se eles não têm uma ação política definida e forte no contexto geral, eles têm a noção de que podem estar sendo usados politicamente. Eu acho que eles têm que se posicionar mesmo. Então, acho que tem uma série de interesses envolvidos aí, que tem a ver com posicionamento político também, mas não só no sentido mais explícito partidário de ter uma opinião sobre a forma como o governo está conduzindo esse momento da pandemia ou o país, tem aspectos mais específicos aí que envolvem a necessidade deles se posicionarem.
CdB: Uma última mensagem sobre o filme para os muitos atleticanos que acessam o Cinema de Buteco?
SB: Enquanto torcedor atleticano desenvolvi uma paranoia que era: será que o time está perdendo porque a gente não lançou esse filme ainda? E a gente está lançando o filme agora num contexto difícil para lançar. Por enquanto, estamos lançando fora do Brasil, no circuito de festivais, porque a gente tem um sonho muito grande de lançar ele nas salas de cinema no Brasil. A gente acha que esse vai ser o melhor evento que o filme pode trazer para o espectador. É uma experiência coletiva numa sala grande e escura e a torcida vendo o filme junto com os espectadores. Isso potencializa o filme.