Xaveco de Buteco: Conto #6 Lateral do tempo

(Para Bartho)

Meu pai foi ferroviário a vida toda. Nos últimos seis anos de trabalho dirigira a Escandalosa. Máquina fabricada pela GE, diziam que tinha esse nome pelo barulho potente do compressor, mas o pessoal da oficina brincava que era pelo gingado abusado com que se esparramava nos trilhos. A foto da #2551 com ele na janela ficava na parede, logo abaixo do Coração de Jesus.

Seu sonho era, um dia, me ver numa locomotiva também. Eu tinha outros planos: futebol! Jogava bola o dia todo, verdadeira paixão que ele combatia como podia para não me tirar dos trilhos. O pai adorava futebol, mas não pra mim. Não queria nem ouvir falar.

O maior amigo e compadre, Seu Donizete, volta e meia acenava com um teste no Fluminense onde tinha alguns conhecimentos, mas meu pai sempre conseguira um jeito de adiar, até que, pelas artes de minha mãe, foi acertada a ida às Laranjeiras. Deveria chegar antes das 9:00 com meu material completo e falar com Pinheiro, antigo ídolo tricolor que agora treinava as divisões de base. Você dormiria na véspera? Nem eu.

Saímos, eu e meu pai, quase duas horas antes. Ele pegou os documentos, dinheiro trocado, a chave de casa, seu inseparável canivete dos tempos de ferroviário e, com enorme má vontade pelo desprazer da missão, abriu o portãozinho da nossa casa de subúrbio. Como sempre, fez questão de passar nas Oficinas para rever os amigos e viajar na cabine. Lá fomos nós: Madureira, Honório Gurgel, Realengo, Triagem… até a gare Pedro II, como meu pai sempre chamou. Ele, emburrado, não trocou palavra. Mais 40 minutos de ônibus e estávamos na sede do Fluminense. O porteiro, vendo minha bolsa com o material, foi taxativo: pela entrada de serviço! O Tricolor separava com rigor os jogadores do quadro social, e isso me deixou envaidecido como parte orgânica do clube. Da casa.

Enquanto eu estava no vestiário, Seu Donizete explicou para meu pai que os reservas do time profissional tinham sido liberados para avaliação médica e o treino ia ser do time titular contra os Juvenis.

Descobri a mesma coisa, com a garganta engasgada, enquanto trocava de roupa no vestiário. Num canto, vi de rabo de olho o Altair, meu ídolo, a figurinha mais difícil do álbum, calçando a chuteira com displicência. Meu ídolo e provável marcador.

Fui para o campo com os outros meninos do teste, fiz umas embaixadinhas desengonçadas e uns chutes para o goleiro: morrendo de medo.

Aquecimento com o preparador físico, três voltas em torno do campo e o treino começou.

Não tirava o olho do Altair. Cada vez que o ponta esquerda vinha para o ataque, ele, sempre sereno, pernas um pouco flexionadas, cabeça erguida, se posicionava e esperava. Na hora exata esticava o pernão e tirava a bola. Simples e infalível. Eu só olhando.

Quase todos os meninos já haviam sido testados quando Seu Pinheiro fez sinal para mim. Estava tão ansioso que ia entrando sem botar a jaqueta, de camiseta mesmo. Enfim pisei em campo. Sabe Meca para o crente? Igual.

O tempo passava e a bola rolando lá do outro lado, longe, muito longe de mim.  Quando enfim o volante me deu um passe lá na ponta esquerda controlei mal e a bola saiu pela lateral. A sensação de vergonha era tanta que nem levantava a cabeça, sentindo a cara afogueada de rubor. Achei que alguém bateu palmas e falou: “Tá bom, garoto!”.  Corri em direção ao meio do campo só para me afastar de onde o pai e Seu Donizete acompanhavam o treino. Embora me movimentasse muito, demorei até receber outra bola, mas mal tinha espaço para me mexer. Percebi um companheiro desmarcado e passei para ele num lance despretensioso e banal.

O treino corria e eu sabia que já ia acabar. Quase no final recebo uma bola da defesa. Levanto a vista e há um corredor à minha frente. Domino e parto correndo feito um louco pela lateral até dar de cara com o Altair, tranquilo, parado, esperando.

A distância até a linha da lateral era mínima, menos de um metro, mas tive certeza de que era por ali que deveria tentar. Dou uma avaliada rápida e, surpreso, reconheço a voz do meu pai: “Vai pra cima dele!” Paro, espero e fico atento para adivinhar o momento certo. Eu não tenho a impressão, tenho a certeza de que o tempo parou. Parou horas, dias, uma eternidade. Ainda deve estar parado lá naquela lateral em Laranjeiras.

Nada se mexia, nem no campo nem no mundo. Quando os planetas se alinharam e ele jogou o peso na perna direita dei um salto pra frente com a bola dominada, passei pela brechinha na lateral a tempo de sentir sua respiração no meu ombro e fui como um foguete até a linha de fundo. Três metros antes do campo acabar escutei novamente meu pai: “Cruza! Cruza!!” Travei a corrida com o pé direito, girei o corpo e numa fração de segundo percebi o centroavante sozinho na área. Mirei (mirei? duvido) e chutei. Como diziam os locutores da época, botei a bola no escudinho da camisa. Ele só empurrou pra dentro enquanto Altair, que vinha na corrida, me jogava lá na pista de atletismo. Em silêncio, ofegante, ele esticou a mão suada para me levantar e Seu Pinheiro apitou o fim do treino.

Tomei banho, troquei de roupa e saí com meu pai. A gente em silêncio. Em toda a viagem de volta ele só disse que Seu Donizete mandara eu voltar no dia seguinte. No portãozinho de casa, meteu a mão no bolso, tirou a chave e o seu inseparável canivete. Esticou-o pra mim e falou: “Toma pra você”.

SOBRE O AUTOR

JUSTINO VIEIRA – Engenheiro de Estruturas, Professor de Engenharia na UFF e Arquitetura na PUC-RJ, leitor obsessivo,

e que passou a vida inteira às voltas com números e contas, mas aprendeu com Drummond que “a luta com palavras é a luta mais vã.”