O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A review de O Exorcista: O Devoto possui spoilers e deverá ser apreciado com moderação.
SE VOCÊ PERGUNTAR PARA UM CINÉFILO SOBRE QUAL É O MELHOR FILME DE TERROR QUE EXISTE, com certeza ouvirá O Exorcista (The Exorcist, William Friedkin, 1973). O longa-metragem foi um verdadeiro fenômeno na época do seu lançamento, com pessoas desmaiando e passando mal em sessões ao redor do mundo — inclusive no Brasil. Além de ser muito eficiente e inovador na sua narrativa (com o passar dos anos, O Exorcista ganhou vários “filhos” bastardos, incluindo continuações pouco badaladas), a adaptação dividiu público e crítica: afinal, era apenas uma obra vulgar e profana ou um tratado sobre a hipocrisia religiosa?
Após acertar a mão em uma releitura de Halloween (John Carpenter, 1978), o cineasta David Gordon Green foi convocado para o maior desafio de sua trajetória: trazer a marca O Exorcista para os dias de hoje. O problema é que Green só conseguiu acertar no primeiro dos três filmes da sua trilogia de Halloween. Com uma carreira “eclética”, que varia desde dramas, como O Que te Faz Mais Forte (Stronger, 2017), ou comédias, como Segurando as Pontas (Pineapple Express, 2008), é difícil antecipar o que Green pode oferecer com seus trabalhos. Fica mais difícil ainda quando se trata de trabalhar com um clássico indiscutível do terror.
Verdade seja dita, O Exorcista: O Devoto (The Exorcist: Believer, 2023) sofre muito mais por ser uma “continuação” do melhor filme de terror de todos os tempos do que por seus méritos e defeitos. Para os cinéfilos calejados forjados no tempo perdido e sangue derramado com filmes ruins, é impossível aceitar qualquer coisa se tratando de O Exorcista (vide o esquecimento das citadas continuações oficiais). Mas e para as pessoas normais, que só querem se distrair com um filme de terror? Será mesmo que o novo Exorcista é tão ruim assim?
A minha resposta é um sonoro NÃO. O maior crime de Green foi ter usado a marca como base para seu trabalho, que independente de não ser um primor técnico, social ou político, como a adaptação de Friedkin, possui mais acertos do que equívocos imperdoáveis. Existem momentos questionáveis, mas que, dentro da lógica interna da “continuação”, são aceitáveis — o que não é a mesma coisa de achar de bom gosto.
Como é de praxe nesses remakes disfarçados de releituras e “continuações”, os minutos iniciais de O Exorcista: O Devoto também acontecem em um país diferente dos Estados Unidos. Porém, na adaptação de Friedkin, existe um objetivo narrativo de introduzir a dualidade do demoníaco e divino, na figura do padre. Na releitura, os acontecimentos da introdução até são revisitados no terceiro ato (a revelação da escolha de Victor – vivido por
Leslie Odom Jr. – em salvar a esposa ao invés do bebê), mas com uma função apenas de surpreender o público e criar uma motivação “inesperada” para as ações do demônio. Percebe como é menor em relação ao original?
Green também se esforça para reforçar elos com filme original ao tentar repetir efeitos sonoros e outras cenas parecidas, mas ele pesa a mão. O demônio é sugerido aos poucos na obra de 1973 e sempre dentro de um mesmo ambiente, com as mesmas personagens envolvidas. A releitura peca pelo excesso. Por exemplo, qual o sentido de sugerir a presença do demônio no ensaio fotográfico com uma família totalmente aleatória? Se não é Victor quem será possuído, deixa de fazer qualquer sentido antecipar a presença do tinhoso durante o seu trabalho. Entendo o argumento de “intuição”, mas também entendo que não foi isso que o filme sugeriu. Esses “flashs” do demônio se repetem em vários momentos sem uma justificativa plausível, fora tentar agradar os fãs. Me pergunto que tipo de pessoa gostou disso… Será um artifício para prender a atenção dos jovens que só conseguem ver vídeos de 15, 30 segundos nas redes sociais?
Mesmo assim, pelo menos durante seus dois primeiros atos, O Exorcista: O Devoto seria visto como mais um filme de terror da temporada, com bons sustos (inclusive, vale a discussão sobre como o produto filme de terror é visto atualmente em comparação com a década de 1970: existe uma ideia popularizada, e totalmente equivocada, que se não existir “jumpscare”, o filme não é bom. Até onde sei, filme de terror é para dar medo. Se querem se assustar, precisam inventar um subgênero de “filmes de sustos” para ficar ao lado do meta terror) e boa contextualização dos personagens. Mas a figura muda a partir dos momentos em que as duas adolescentes são possuídas. Aliás, quando falo que a releitura peca pelo excesso, é preciso ver que desta vez são DUAS meninas sofrendo.
O terceiro ato é muito duvidoso. Não ao ponto de invalidar os méritos do filme até aqui ou potencializar demais seus problemas, mas problemático o suficiente para justificar todas as análises negativas que o longa recebeu até aqui. Ainda que o roteiro justifique a quantidade de personagens envolvidos, é mais um excesso. Não temos tempo para conhecer ou se interessar pelos coadjuvantes e isso prejudica até mesmo o desenvolvimento dos protagonistas.
A gente entende Victor e os conflitos que levam sua filha adolescente a buscar saber mais sobre a mãe. Mas acabamos tendo um contato superficial com a família da outra adolescente possuída. É importante saber que são religiosos fervorosos e dispostos a fazer qualquer coisa pelo próprio egoísmo (pelo menos aqui, existe uma crítica muito certeira à forma como as pessoas entendem a fé), mas a impressão é que, mesmo assim, nós não sentimos que os conhecemos o suficiente para sentir o peso da possessão. Não há espaço para gerar uma relação, como acontece com Victor e sua filha Angela (Lidya Jewett). Se eu fosse uma pessoa mais maldosa, diria que só escalaram uma segunda garota possuída para tentar enganar as audiências usando alguém fisicamente parecido com Regan (Linda Blair, no filme original).
Em O Exorcista, o Padre Karras (Jason Miller) tinha um sério conflito interno a respeito da sua própria fé. Na continuação, tentam incluir a figura de Karras em Victor, mas sem sucesso porque isso simplesmente não é explorado o suficiente. Por isso, quando os minutos finais reúne religiosos de vários estilos, fica vazio, bobo e cafona. Chega muito perto de ser uma propaganda de autoajuda para dizer que Deus está dentro de cada um de nós (o que eu não vou dizer que discordo). O que deveria ser uma bela conclusão é enfraquecida pela dificuldade em manter um foco. Em que mundo líderes religiosos fariam um exorcismo coletivo sem tentar tomar para si mesmos o protagonismo? A ausência desses pequenos conflitos de ego e vaidade diminuem os envolvidos, tornando os personagens bidimensionais e pouco realistas. A consequência maior é uma ameaça que pouco convence, o que é um tanto imperdoável se tratando da marca O Exorcista.
A conexão mais óbvia com a obra de Friedkin é o retorno da atriz Ellen Burstyn, que viveu a mãe de Regan. Agora ela é conhecida como autora de um best-seller sobre as suas experiências. De alguma forma, ilógica, a sua presença é imediatamente reconhecida pelo capiroto, mas não o suficiente para isso significar cuidado e cautela. Pelo contrário, ao lado de Victor, Chris entra na casa da família com a segunda jovem possuída e tenta resolver o problema sozinha. O resultado é mais uma “homenagem” ao filme de 1973, desta vez com o crucifixo sendo usado como objeto de penetração de uma forma menos sugestiva e mais violenta. Espero que Burstyn tenha recebido um bom cachê para isso. Por fim, e longe de ser importante, os fãs ainda são presenteados com uma breve aparição de Regan. Poderia ser um desastre, mas pelo menos “encerra” o conflito de Chris sem saber o paradeiro da filha.
O Exorcista: O Devoto enfrenta também um outro problema, além das comparações e expectativas em relação ao trabalho genial de Friedkin: a mudança dos tempos e comportamento do público. Ainda que os EUA vivam um período de crescimento do pensamento conservador e religioso, o número de ateus vem crescendo. Uma pesquisa divulgada pela BBC em 2022 indica que vivemos o período com maior número de ateus em oito décadas. Seria impossível querer repetir ou superar o filme de 1973, quando o mundo era totalmente diferente e nós, como sociedade, menos cínicos e céticos.
Apesar de todas as considerações e problemas apontados, seria injusto apontar O Exorcista: O Devoto como um desastre completo. Ele erra ao caminhar por um lado de doutrinação espiritual (não necessariamente religiosa), ao invés de se manter nas críticas pesadas e subentendidas da adaptação de Friedkin. Seria pedir demais que David Gordon Green conseguisse repetir a técnica e sofisticação do falecido William Friedkin, mas isso não significa que está tudo bem tornar O Exorcista em um produto desprovido do ingrediente mais básico de um clássico do terror: o medo.
Crítica do filme O Exorcista: O Devoto no YouTube:
Recomendo essas críticas do filme O Exorcista: O Devoto para complementar meu texto:
- Diretor de Halloween agora ataca O Exorcista (Marcelo Seabra)
- Mais um crime de David Gordon Green (Dalenogare)
- O Exorcista: O Devoto é um horror… não no bom sentido (Natalia Kreuser)