O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A review de Zona de Interesse possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
ÀS VEZES ACONTECE DE UM FILME SER TÃO DESCONFORTÁVEL, que a gente prefere se proteger emocionalmente de uma futura revisão. Senti isso com Amor, de Michael Haneke. Deus me livre de ver ele novamente. Aquilo é a coisa mais assustadora que já vi no cinema. O recente Ângela, de Hugo Prata, também me deixou com uma sensação de desconforto imensa. E eu desconfio que um dos principais candidatos ao Oscar 2024, com cinco indicações, entrará nessa mesma lista de obras para assistir apenas uma vez.
Não me entenda mal.
Gosto muito dos três longas citados. E parte da qualidade deles está justamente no impacto causado. É tão grande e tão intenso, que obrigam até um grande defensor das revisões preferir viver a experiência apenas uma vez. O desconforto não deve ser usado contra uma obra de arte: é exatamente um mérito da sua capacidade de entrar na cabeça do seu espectador.
Levemente inspirado em um romance homônimo de Martin Amis, Zona de Interesse (The Zone of Interest, Jonathan Glazer, 2023) mostra a vida da família de um comandante nazista que vive ao lado do campo de concentração de Auschwitz, durante os anos do Holocausto.
Em seu quarto longa (Sexy Beast, Reencarnação e Sob a Pele foram os anteriores), Glazer tortura o seu espectador. Na maioria das obras a que assistimos, sentimos uma empatia e proximidade imensa com os personagens. É quase como se a gente fizesse parte da sua história. Em Zona de Interesse é mais uma situação de sequestro intelectual. Sentimos o tempo inteiro que estamos amordaçados e presos, totalmente incapazes de desviar os nossos olhares da vida “pacata” dessa família.
Esse distanciamento existe principalmente nos minutos iniciais, na questão sonora: a gente enxerga a família durante um picnic, mas mal consegue ouvir o que eles dizem. É curioso que o restante do filme continue mostrando a família, mas o som do ambiente fica muito nítido. São gritos e tiros que se repetem incessantemente durante uma festinha ou um jantar. Nós, como espectadores, não conseguimos ver nada. Exceto pelas reações frias e indiferentes dos protagonistas. E isso diz muito, não é mesmo?
Há quem diga que Zona de Interesse seja dois filmes em um só: um que você enxerga e outro que você escuta. Robert Daniels, do site do lendário Roger Ebert, não poderia estar mais correto nessa pontuação. Dentro do seu objetivo de torturar seu público, Glazer cria planos lindos com seu diretor de fotografia. Sempre explorando a profundidade do cenário, o diretor faz esses contrastes da beleza escondendo a podridão humana.
Durante seus últimos suspiros, Zona de Interesse mostra o protagonista descendo as escadas. Ele para, volta, olha para o espectador, e continua descendo para a escuridão. É um encerramento perfeito para ilustrar um período tão sombrio da história da humanidade. Seja por vergonha ou por pura maldade, o personagem desce até o fim do “poço”, de onde nunca irá sair.
Zona de Interesse entra fácil no hall de melhores filmes sobre o Holocausto. A sua vantagem em relação a clássicos como A Lista de Schindler ou O Pianista é a sua frieza para encarnar os conceitos da banalidade do mal apresentados por Hannah Arendt. Jonathan Glazer conseguiu ser tão frio e indiferente quanto a realidade dos culpados pelo genocídio nos campos de concentração. Excelente filme, mas nem a pau vejo novamente.
PS: Geralmente prefiro destacar imagens com o rosto dos protagonistas, mas a foto escolhida possui muitos simbolismos. Por exemplo, a mãe, que se mostra muito mais sensibilizada em relação ao destino dos judeus, está usando um vestido preto, como se estivesse de luto. Já a filha, que se preocupa unicamente com seu status e família, usa um vestido vermelho simbolizando o sangue, a morte. Entre elas existe uma divisão que as deixa em lados separados. Ao fundo, Auschwitz em plena ação.