Por Álvaro Sant’Ana Trópia
“Pobres Criaturas”, dirigido pelo cineasta grego Yorgos Lanthimos, explora os limites da sexualidade e consciência numa verdadeira odisseia de gênero. Com trama surreal ambientada num vitoriano cenário steampunk, o filme conduz a biografia de Bella Baxter a partir de uma pergunta motriz: o que pode um corpo?
Bella tem corpo de adulta e mente de criança. Tal como a mulher original, a protagonista vive no mundo perfeito e controlado feito pelo cirurgião e cientista Godwin “God” Baxter, também seu criador (foi God quem implantou o cérebro do bebê de Bella em seu corpo para que ela vivesse novamente). Assim como no Gênesis, a protagonista é tentada pela serpente (o arquetípico amante Duncan) à rejeitar seu paraíso artificial criado pelo Pai a partir da mesma premissa: o desejo irrefreável de experimentar e conhecer, inerente à infância e juventude.
A dinâmica da narrativa é tão boa que consegue se sobrepor aos impressionantes cenários coloridos e aos criativos jogos de câmera em grande abertura. Aqui, a psicanálise de Freud e a fenomenologia de Merleau-Ponty dão o tom do desenvolvimento frenético da consciência-corporeidade da protagonista que passa a experimentar uma vida sem constrangimentos, como é reforçado em inúmeras cenas e inicialmente marcada pela descoberta da masturbação, onde Bella usa de uma maçã (símbolo máximo do pecado) para gozar e convida a governanta da casa para fazer o mesmo, uma vez que ela descobriu a “forma de se fazer feliz”.
A protagonista centraliza quase toda a experiência do feminino ao longo do filme, comportando ela mesma diferentes aspectos – e arquétipos – de um corpo-mulher. No máximo, há duas personagens adicionais que reforçam e amplificam aspectos já presentes em Bella naquela determinada circunstância narrativa em que se encontra, a saber, a amiga de barco e a contratante de Paris. Os personagens masculinos, por sua vez, encerram cada apenas um arquétipo mais ou menos bem delimitado (o Pai, o Amante, o Tirano etc), criando uma interessante contraposição entre a experiência masculina e a feminina em termos de complexidade.
O contraste entre o comportamento infantil e o corpo adulto possibilita à personagem o ápice da experiência desejante: realizar a vida com a franqueza de uma criança e a potência de um corpo adulto. E assim sucedem as maravilhosas e necessárias cenas de sexo do filme, mas não só. Olhando de perto, toda e qualquer cena é uma cena de desejo bruto à lapidar a própria consciência; o volume de sexualidade explícita só serve para nos mostrar mais uma forma óbvia e prática de manifestá-lo.
Não me pareceu em momento algum que o filme tenha alguma mensagem à ser transmitida, tal como um produto. Trata-se de um fazer, aconteceres biográficos – singulares pela condição de Bella – que nos apontam para um experimento freudiano essencial: e se o ID tivesse um corpo adulto? A partir daí cabe à nós simplesmente acompanhá-lo com o máximo de infantilidade possível.
Explorando uma versão feminina do Além Homem de Nietzsche, talvez haja sim uma mensagem de Lanthimos a ser transmitida para o expectador: o Além Homem é, na verdade, mulher.