O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica de A Substância possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
ESTRELADO POR DEMI MOORE, A Substância (The Substance, Coralie Fargeat, 2024) já pode ser considerado como uma das obras mais relevantes do cinema. Pelo menos no que diz respeito à objetificação do corpo feminino no mundo do showbusiness. Não é por acaso que o longa se tornou um dos mais populares da temporada e figurou na lista de melhores filmes de 2024. Inclusive, é candidato ao Oscar de Melhor Filme, Direção, Atriz, Roteiro Original e Maquiagem.
A trama mostra Elisabeth (Moore), uma ex-atriz famosa que ganha a vida apresentando um programa fitness na TV. Segundo o seu produtor, chegou a hora de uma aposentadoria forçada e isso a deixa despirocada das ideias. A consequência é buscar uma versão Black Mirror de Ozempic, que acaba fazendo Elisabeth criar Sue (Margaret Qualley). Enquanto Elisabeth é considerada velha para os padrões de beleza, Sue é exatamente o que os produtores querem ver em ação. O problema é que as duas precisam encontrar o equilíbrio para existirem juntas e essa convivência não está nos planos da piriguete narcisista sedenta pela fama.
Com referências deliciosas a O Iluminado (The Shining, Stanley Kubrick, 1980) e Psicose (Psycho, Alfred Hitchcock, 1960), Fargeat estabelece um ambiente irresistível para amantes da sétima arte. Podemos apontar os ecos de Laranja Mecânica (Orange Clockwork, Stanley Kubrick, 1972) na câmera olho de peixe, principalmente quando o personagem de Dennis Quaid está em cena. O uso do tapete com padrão geométrico visto nos corredores do estúdio até pode não ter o mesmo efeito narrativo de evocar um labirinto, mas consegue criar desconforto e claustrofobia no espectador. É como se Elisabeth estivesse sufocando nos padrões de beleza que não consegue mais atingir. Existem planos propositalmente “copiados” dos clássicos citados para aprofundar ainda mais esse sentimento nos espectadores.
Mais do que um prato cheio para cinéfilos, A Substância distorce a realidade em um exagero bizarro, buscando chocar o público ao máximo.. Se falar isso de forma direta não basta, então é preciso apelar para o absurdo. Vivemos uma época em que a necessidade de ter o corpo perfeito é uma obrigação. Não podemos descuidar da aparência hora nenhuma. Envelhecer então, nem pensar. Isso é ainda pior para mulheres, sempre tratadas como meros objetos por aqueles que controlam o jogo.
Merecidamente indicada ao Oscar de Melhor Atriz (o que está longe de significar que também mereça ganhar o prêmio), Demi Moore é perfeita para o papel. Vista como uma atriz cujos méritos parecem depender exclusivamente da sua beleza, ela tem a oportunidade de usar sua própria experiência (e de tantas colegas) para tornar Elisabeth real. Para a indústria existe um prazo de validade para uma atriz continuar em cena. A Substância escancara isso sem pudor.
A tão criticada objetificação faz parte da narrativa. A câmera voraz persegue os corpos de Moore e Qualley como se estivesse faminta. A diretora parece gritar o tempo inteiro: “Ei, homens, vocês não gostam de ver traseiros? Vejam esses traseiros e tentem perceber o quanto vocês são idiotas!”. É uma crítica inteligente tentar subverter o que incomoda e ridicularizar o homem padrão. Pena que poucos serão capazes de perceber a mensagem, já que estarão babando com a exposição digna de um exame ginecológico do corpo de Qualley (ou sua dublê).
As consequências de Sue deixam os espectadores agoniados durante boa parte da produção. Para quem fica nervoso com cenas de operações, injeções etc, talvez seja melhor um certo cuidado ao conferir o filme. Mas nada pode preparar o público para os minutos finais de A Substância. Puxando o cinema do canadense David Cronenberg, Fargeat mostra o quanto gosta de body horror e A Mosca (The Fly, 1986). O terceiro ato é a cereja do bolo de absurdos exagerados do filme. Do nada, e de uma forma muito trash (no bom sentido), A Substância se transforma em um literal banho de sangue (novamente em uma referência ao clássico O Iluminado, diga-se de passagem) e consegue tirar nota 10 na prova para revirar o estômago do público.
A Substância é uma experiência forte e um dos melhores filmes de 2024. Indicado para todos que gostam de discutir o sistema e suas injustiças, o longa-metragem é um convite para refletir sobre as necessidades de atender padrões de beleza cada vez mais irreais. E a melhor parte é que a narrativa se propõe a discutir esse tema fazendo cinema de primeira qualidade, fugindo dos estereótipos e tudo que é óbvio.