A Recompensa

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PERSONAGEM-TÍTULO. Talvez o mais apropriado, neste caso, fosse personagem-filme. O termo sequer existe, provavelmente, mas não tem problema; como o título original sugere, A Recompensa é integralmente regido por Dom Hemingway (Jude Law, de Terapia de Risco), servindo como uma espécie de ode – ou mesmo subversão – à sua personalidade.

O tal personagem fora um dos maiores arrombadores de cofres de Londres, em seu auge, porém, atualmente está deixando a prisão após 12 anos longe das ruas e do crime, e sem perder a pompa de um criminoso elegante, egocêntrico e perigoso, deixa as grades para trás em busca de sua recompensa por um poderoso colega que deixou de delatar, Mr.Ivan Fontaine (Demian Bichir, de As Bem-Armadas), para, com o dinheiro nas mãos, ir ao reencontro de sua filha, Evelyn (Emilia Clarke, de Game of Thrones), com quem não tem uma boa relação, e, em sua perspectiva, recuperar o tempo perdido – o que inclui muitas drogas, sexo e crimes, em sua maioria acompanhados do fiel escudeiro Dickie (Richard E.Grant, de A Dama de Ferro). Graças ao seu temperamento imprevisível, no entanto, as coisas jamais sairão conforme o planejado para Dom.

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A personalidade de Hemingway fica claramente exposta desde a cena de abertura da projeção – onde o detento monologa a respeito de seu próprio pênis, elogiando-o de maneira eloquente -, apresentando-o como o canalha egocêntrico que é – não há maneira mais franca de defini-lo. Maiores detalhes a respeito de seu passado, comportamento criminal e as circunstâncias que o levaram até lá, no entanto, são revelados aos poucos, durante o desenrolar da trama, dispensando as por vezes incômodas prolongadas explicações a respeito disto. Seja num plano-relâmpago – ao melhor estilo Franky Quatro Dedos, de Snatch – Porcos e Diamantes -, revelador de sua tendência a esbaldar-se numa chance de estar com prostitutas e cocaína, ou mesmo na sádica sequência do espancamento de Sandy Butterfield (Nick Ragget), primeira ação do protagonista ao deixar a detenção, levando-nos à descoberta de que este, enquanto Dom esteve na cadeia, relacionou-se com sua falecida esposa – e a morte desta é outro fato que viríamos a descobrir durante o passar dos atos -, e revelador da crueldade e frieza de Dom – utilizando-se do truque de narrá-lo tendo conversas casuais durante a realização das duras agressões -, quando necessário, tornando-o ainda mais ameaçador. Não há necessidade de grandes exposições, ou mesmo quebras no dinamismo da trama, para revelar detalhes como estes. A sutileza permeia o roteiro de Richard Shepard (de A Caçada), neste sentido.

O mesmo não ocorre com relação ao humor, onde, contrariando a visão popular que se constrói a respeito das produções britânicas, não existe a sutileza ou sarcasmo implícito, desenvolvendo a comédia a partir de excessos, exageros e até certas grosserias – repare em toda o ritmo frenético e loucura da sequência que sucede Dom recebendo o seu dinheiro -, algo que, embora possa desagradar ao grande público, complementa de maneira eficiente a personalidade de seu protagonista e a situação criada. Jude Law incorpora este espírito com perfeição, no grande trabalho de sua carreira – sem medo de hipérboles -, comprovando o próprio amadurecimento ao abraçar o overacting, as imprevisíveis explosões e a necessidade do bizarro, arriscando-se em deixar o campo de conforto do bom moço ao qual por vezes se acostumou, justamente numa trama que trata, justamente, de amadurecimento. Dom Hemingway não busca deixar os seus costumes passados, a ilegalidade, o crime; ele busca o amadurecimento, ainda assim, sem necessariamente deixar a sua fase anterior. A Recompensa trata-se, sobretudo, de digressões.

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No conflito, perdem-se algumas coisas. Entre o anti-heroísmo intrínseco à personalidade do personagem e a busca por reconquistar sua filha – e esta representa a família, de maneira geral -, cria-se, também, um conflito na abordagem do longa, prejudicando seu foco narrativo. Aderindo surpreendentemente a um melodrama, destoante de sua atmosfera, nas cenas que envolvem a família do protagonista, a fita acaba entregando-se ao lugar comum por alguns momentos, o que é absolutamente conflitante com suas perspectivas ousadas em relação ao homem bem estabelecido, à subversão de valores. O conflito narrativo também é representado pelo sumiço de Dickie, um personagem de tão grande importância durante a primeira metade, e que desleixadamente some na trama durante os últimos 45 minutos, contrapondo-se à maior importância atribuída à filha do personagem-título, cuja relação com o pai, inicialmente extremamente conflitante, não recebe a base necessária para tornar os seus conflitos mais críveis e integralmente envolventes.

Problemas que atém-se ao próprio Hemingway – nome que, curiosamente, pode ser lido como uma referência ao autor norte-americano Ernest Hemingway, outro famoso por entregar-se aos mais variados tipos de extravagâncias. A obra, como já mencionado, trata-se de uma reflexão de seu próprio protagonista. A etapa pela qual passa, em sua vida, é de extrema confusão e indecisão, entre os contra-valores pessoalmente estabelecidos e a necessidade das obrigações morais, dos valores sociais, aplicarem-se à si mesmo. Daí surge a confusão. Surge a construção glamourosa, abusando de planos americanos e estáticos que inseriam o personagem sobre grandes fundos de colorações fortes, as vestimentas modernas e classudas e um temperamento que sobrepunha-se sobre todos à sua volta. Transforma-se no homem em fuga, no consequente desleixo visual, na entrega emocional diante do túmulo da ex-esposa. Finda numa conclusão inconclusiva. Uma conclusão equilibrada. Que mescla as resoluções de seu passado, com o abraçar do compromisso de futuro. Sem necessidade do abandono do passado, ainda que como válvula de escape, como suprimento da explosão – esta última, ainda que em menor grau do que a de Dom Hemingway, aquela necessitada, vez ou outra, por todos nós. Rápido, passageiro, mas foi o que precisávamos saber. Não precisávamos conhecer o futuro, apenas atravessar esta fase.

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[tresemeia]