A ARTE ABOMINA O ESTANQUE COMODISMO e, portanto, debate-se de todas as formas para desamarrar os nós dos signos, formas, fórmulas e padrões estabelecidos e encontrar, dentro do caos proporcionado pela liberdade, um recomeço. Questionar os artistas de outrora e desconstruir a arte por eles praticada assumem neste contexto a conotação de amadurecimento, quiçá evolução, embora neste caso o termo pareça sugerir uma melhoria e não é o caso do “novo” ser melhor do que o “antigo”, mas somente inovador.
Nascido de um cineasta alheio à escassez de recursos e apaixonado pela arte cinematográfica, Por um Punhado de Dólares é o sopro de vida que o faroeste precisava em um período que a imagem do xerife e os duelos entre bandidos, forasteiros e índios encontrava a sua maior depressão. Não é, de forma alguma, o precursor do chamado “faroeste espaguete” – Os Apuros de um Xerife (1958) é quem discutivelmente mantém esta honra – mas é o trabalho que popularizou o subgênero e melhor incorporou suas inovações estilísticas e narrativas, conferindo sobrevida quase ao mesmo tempo em que O Homem que Matou o Facínora (1962) selava o caixão do “faroeste clássico”.
Em outras palavras, troca-se um ícone por outro. Sai o xerife viril, honrado e agora cansado John Ford para ceder o posto a um anti-herói sem nome, sem passado e com uma moral ambígua imortalizado por Clint Eastwood – que, três décadas depois, aposentadoria o poncho e a pistola em notas altíssimas com Os Imperdoáveis (1992). Insensível aos conflitos da cidade fronteiriça de San Miguel, o forasteiro Joe, o mais próximo que chegamos de batizar o homem sem nome, encontra uma posição privilegiada em que pode atiçar a disputa histórica entre os Baxter e os Rojo e lucrar bastante com isso, oferecendo seus serviços de pistoleiro.
Essa história, plagiada do roteiro de Akira Kurosawa em Yojimbo (1961), é mais velha do que o próprio cinema e a engrenagem narrativa nela existente inevitavelmente empurrará Joe a cometer um deslize que o colocará à beira da morte, quando então encontrará forças para vingar-se de seus adversários. Não é isto que torna Por um Punhado de Dólares especial mas a maneira com que a combinação entre a direção de Sergio Leone, a atuação cínica e também espirituosa de Clint Eastwood e a trilha sonora inesquecível de Ennio Morricone (sob o pseudônimo de Dan Savio) encontraram o vigor de empurrar a arte um degrau acima.
Ângulos baixos agigantavam anti-heróis e vilões, closes nos olhes expunham a impassível brutalidade daqueles homens, o senso de humor irônico e sarcástico contrabalanceava a violência gráfica antes apenas sugerida nos faroestes clássicos, o homem surge como defensor dos próprios interesses e não da justiça e da ordem social, eram alguns dos traços comuns do gênero empregados com elegância aqui por Sergio Leone – cujo ápice criativo viria com Era uma Vez no Oeste (1968). Não há compaixão na narrativa e mesmo crianças, mulheres e cadáveres (?), intocáveis, ao menos os dois primeiros, não estão fora da mira de sujeitos despidos de valores.
Para enfrentá-los, somente um pária com os mesmos defeitos e às vezes valores piores porém que no momento certo adotará uma postura que, se não é heroica, ao menos é competente em purificar com o sangue corrupto o velho oeste (lido em sentido amplo). Este homem encontrou em Clint Eastwood o rosto enigmático que mesclasse tantas contradições simultaneamente sem jamais perder o charme, a ameaça e a genuína indiferença com os demais. Abrandá-lo, por quê? E quando isto ocorre, é em prol do desenvolvimento do personagem e somente pontualmente, como é o caso de um diálogo que justifica a sua preocupação com a segurança de mãe e filho ameaçados pelos Rojos (“Eu conheci alguém como você uma vez e não havia ninguém para ajudá-la”).
Não que isso vá humanizá-lo ou afastar os tiros certeiros disparados contra seus alvos, mas é um ponto de partida para quem deseja esmiuçar a lenda de um homem que, não contente em salvar uma cidade das mãos de bandidos perigosos, resolveu escapar da ditadura do ordinário e revitalizar o gênero mais amado por nossos pais. No entanto, este homem não é mais Clint Eastwood nem tampouco sua persona cinematográfica, mas o visionário Sergio Leone.