Planeta dos Macacos: O Confronto

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A REINVENÇÃO REALIZADA POR RUPERT WYATT há cerca de três anos para o universo distópico d’O Planeta dos Macacos, criado por Pierre Boulle 1963, e levado aos cinemas pela primeira vez em 1968, por Franklin J.Schaffner, não apenas realizou em película sua adaptação daquela obra, como pode ainda ser considerada a melhor e mais legítima narrativa cinematográfica inspirada na Revolução Russa. Não procuro me prolongar demasiadamente neste parágrafo introdutório, mas é difícil não fazê-lo ao ter a oportunidade de destrinchar esta interpretação da obra. Pois bem, inicialmente, há a retratação da opressão da raça humana sobre nossos ascendentes primatas, atualmente explorados cruelmente – bem como todas as espécies – para tornarem-se instrumentos do sistema em busca do progresso. A insatisfação geral do grupo oprimido gera suas justas tomadas revolucionárias: a definição de um líder – Caesar -, o processo de educação – através do experimento humano que fortalece intelectualmente os macacos -, e a ação de força propriamente dita. Quando a massa proletária – ou no caso, animal – reconhece a força que possui, detê-la é tarefa das mais difíceis. Esclarecendo o óbvio, os primatas surgem como metáfora para o proletariado, e os seres humanos, consequentemente, para as elites proprietárias.

Dito isto, nas mãos de Matt Reeves (do bom Cloverfield: Monstro) ficou a missão de propiciar-nos uma experiência que, no mínimo, conseguisse ser tão tocante, eletrizante e provocadora de reflexões – nesta ordem – quanto a de seu antecessor. Enquanto a produção de 2011 centrava sua narrativa no ato da revolução, Planeta dos Macacos: O Confronto consegue inusitadamente fazer-se, desta vez, uma das mais interessantes adaptações para A Revolução dos Bichos, obra de George Orwell que, por sua vez, era uma revisão metafórica histórica anti-Stalinista para o regime adotado na União Soviética a partir desta revolução. Certamente, a tarefa caiu nas mãos certas.

Contextualizado dez anos após a revolução primata, Planeta dos Macacos: O Confronto foca-se, inicialmente, em expor como a população humana foi praticamente dizimada pelo vírus surgido na época graças ao problemático experimento desenvolvido pela GenSyn. A humanidade esteve em caos, ao passo que a sociedade primata organizou-se e cresceu. Paralelamente, algumas centenas de norte-americanos sobreviventes também buscaram, na medida do possível, organizar-se para a formação de uma comunidade. A partir disto, este esboço de sociedade busca desenvolver-se para recuperar o acesso à energia, que poderá ser gerada através de uma antiga represa, localizada justamente no território primata. Mais uma vez, o progresso torna-se o elo do confronto surgido entre a raça humana e a espécie animal que originou-a – desta vez, num choque mais intenso.

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O mais interessante da retratação paralela do desenvolvimento destas duas comunidades é sua aproximação – se o longa anterior buscava retratar a crueldade imposta pelo soberano conjunto humano, esta continuação, já retratando uma consideravelmente avençada comunidade primata, nos dá a chance de observar a exposição das injustiças também desta, mas, acertadamente, sem equipará-las às cometidas por nossa sociedade. O próprio Caesar (Andy Serkis, de O Hobbit: Uma Jornada Inesperada) expõe esta observação, num dos diálogos mais tocantes do roteiro de Mark Bomback (de Wolverine: Imortal), Rick Jaffa e Amanda Silver (ambos do original). Ainda assim, a retratação inicial da sociedade primata expõe algumas de suas principais virtudes – a priorização do conjunto sobre o indivíduo e a não-necessidade do progresso material, sobretudo. Fatores como este levam-nos a questionar se esta trata-se de uma narrativa distópica ou utópica, afinal.
No entanto, a grande catarse responsável por provocar a queda da soberania – desta vez – primata, dá-se num conflito interno, mas diretamente interferido pelo conhecimento do elemento bélico, naturalmente humano. O explosivo Koba (Toby Kebbell, de O Sistema) conhece o poder do belicismo e, ainda, da construção de um mártir para voltar a massa à um determinado movimento – o que leva-o a agir contra Caesar, movido por conflitos ideológicos. Esta questão determina diretamente uma das principais críticas proferidas pelo realizador Matt Reeves nesta obra: a indústria belicista e sua influência no imperialismo da política externa norte-americana. A retratação crua acerca dos testes militares realizados pela comunidade humana, e do primeiro contato primata com as armas, são indícios fortes disto.

Catarse também é uma expressão fundamental para descrever, especialmente, a segunda metade da projeção. Reeves age com excelência para o estabelecimento climático, propiciando para o espectador um constante crescimento da tensão, apropriando-se sublimemente da grandiosa trilha sonora de Michael Giacchino (de Além da Escuridão: Star Trek), que reforça a cada sequência a intensidade do conflito que se aproxima. E quando chegamos ao terceiro ato, as sequências de ação trabalham ferozmente através das empolgantes decisões do diretor e de Michael Seresin (de Entre Segredos e Mentiras), responsável pela fotografia da película. A filmagem das sequências de ação substitui a iluminação high key do original pelo low key, reforçando o sombrio cenário pós-apocalíptico aqui explorado. Ainda que ganhe o aspecto escuro – reforçado pelo absolutamente dispensável recurso do 3D -, Planeta dos Macacos: O Confronto jamais subestima suas próprias capacidades, retratando a ação quase sempre em planos abertos e eficientes na localização geográfica do espectador no contexto da cena, contrariando alguns blockbusters que preferem realizar enquadramentos fechados, deixando o público perdido em cena, além de tornar o confronto visualmente grandioso.

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A principal força da produção não localiza-se no eletrizante desenvolvimento da ação, dos embates, ainda que este seja um de seus méritos – atente-se especialmente à sequência em que Malcolm (Jason Clarke, de O Grande Gatsby) deve voltar à cidade para buscar suprimentos médicos e receba uma das cenas mais tensas do Cinema neste ano (apesar da covardia de não retratar sua trajetória de volta). Os pontos provocadores de maior admiração na fita, bem como no longa de Rupert Wyatt, residem na profundidade de seus personagens e no peso dado à cada uma de suas atitudes. É assustador notar o quanto sentimos, emocionalmente, quando os primatas são colocados em risco pelos seres humanos – é uma construção dramática realizada desde o filme anterior. A profundidade ideológica por trás de Caesar, que adquiriu sentimentos humanos ao invés de manter a personalidade direta e instintiva de sua espécie, representa muito na chegada da obra aos seus verdadeiros objetivos, afastados do completo niilismo e que não buscam demonizar a espécie humana e idealizar os primatas como a sociedade perfeita – nosso herói traz traços decisórios de ambos, o que torna-o ainda mais fascinante.

Da mesma forma, existem as personagens humanas que nos aproximam – como se isto já não ocorresse naturalmente – da torcida emocional por nossa própria espécie, ainda que o válido estereótipo de sujeitos detestáveis como Carver (Kirk Acevedo, da série Grimm) sirva para relembrar-nos da problemática envolvendo esta, além da própria situação retratada. Opondo-se à este sujeito, existem Malcolm e Ellie (Keri Russell, da série The Americans), exemplos de defesa de um convívio harmônico entre as duas espécies e raras exceções entre os ferrenhos defensores do sistema capitalista e ultra-progressista adotado por nossa sociedade, que levou-a à acabar quebrada. Para construir sua figura, é Jason Clarke quem ganha destaque na trama, compondo um personagem acertadamente vulnerável e temeroso em relação aos primatas, o que, ao lado de belíssimos contra-plongées na retratação de Caesar, servem para relembrar-nos da superioridade destes primatas na hierarquia das espécies, neste contexto. (Ah, e claro, não poderia esquecer-me de destacar, do outro lado, a presença de Gary Oldman, admirável apenas por chegar a gritar, por uma vez, “Everyone!”, com um pouquinho só a menos de intensidade do que no sensacional O Profissional.)

Simbolicamente, Matt Reeves ainda realiza alguns planos memoráveis – como aquele que parte da relação de amizade entre um garoto e um macaco para, em seguida, expor testes bélicos realizados por outros dois sujeitos detestáveis -, para representarem ainda mais as observações ideológicas da produção, absolutamente cumpridora de seus objetivos no desenvolvimento de uma relação de fascinante ambiguidade entre as sociedades humana e primata – grupos opostos por, justamente, serem tão próximos -, obrigando-me a repetir, com muita satisfação, alguns dos adjetivos que utilizei para caracterizar o longa para o qual este abordado serve como continuação: Uma obra tocante, eletrizante e provocadora de reflexões – nesta ordem.

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Planeta dos Macacos: O Confronto (Dawn of The Planet of The Apes, EUA, 2014. De Matt Reeves)

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