Os Miseráveis

O INÍCIO DE OS MISERÁVEIS REVELA, em uma tomada aérea, o trabalho de centenas de prisioneiros em um navio gigantesco. Estes cantam sobre os desesperos da vida carcerária, que os leva a questionar o tempo que falta para, enfim, morrerem. O tom grandiloquente da abertura continua durante todo o musical: o sofrimento dos personagens parece não ter fim, as paixões são arrebatadoras, e os conflitos incontornáveis. Para lidar com material que na sua origem já soa tão excessivo, o ideal seria contar com um diretor sóbrio, com mão firme. Ao invés disso, Tom Hooper decide abraçar todos os tiques e vícios pelos quais é conhecido, quase afundando o filme, que em mãos mais talentosas poderia resultar em uma grande obra.

Seguindo a trajetória de Jean Valjean após sua fuga, a narrativa apresenta uma série de personagens que se relacionam direta ou indiretamente com o fugitivo interpretado por Hugh Jackman. Assim, conhecemos o implacável perseguidor Javert, a prostituta tuberculosa Fantine, sua filha Cosette, o casal Thénardier, que cuida, mal, da criança. A esses se juntarão outros, uma vez que a história dura quase duas décadas. Com elenco tão extenso, é animador perceber ele é homogeneamente bom, com poucas notas dissonantes.

Adotando a opção de gravar as canções ao vivo, Hooper permite que seu elenco utilize o canto para fins dramáticos. Não espere, portanto, virtuosismo técnico; as performances musicais são extensões das atuações. Dessa maneira, Anne Hathaway soluça no meio de seu solo, Jackman se permite desafinar em alguns momentos e Sacha Baron Cohen está mais interessado em ser engraçado do que impecável. Embora essa decisão funcione, ela também evidencia o desnível entre um Russell Crowe, no máximo esforçado, e uma Samantha Barks, profissional do canto, ou entre os protagonistas e o elenco de apoio. Isso não chega a ser um problema, pois as músicas, testadas ao longo de mais de trinta anos em musicais, são excelentes e orgânicas à narrativa.

Se não são exímios músicos, os atores compensam essa falta de habilidade com desempenhos fortes e precisos, ajudados por um roteiro que impõe conflitos morais para praticamente todos os protagonistas. Valjean se arrepende por ter traído a única pessoa que lhe ofereceu abrigo e teme revelar a verdade sobre seu passado para sua filha adotiva. Javert não consegue compreender a diferença entre a lei e a justiça, e entender a bondade em criminosos. Fantine precisa abandonar seu orgulho próprio e se prostituir para alimentar a filha. Marius está indeciso entre se dedicar à luta revolucionária ou se render ao amor. E Éponine precisa decidir se ajuda Marius, por quem tem uma paixão não correspondida, a se envolver com Cosette. Assim, Jackman surge intenso como o prisioneiro 24601, e com o desequilíbrio contido de alguém que vive uma mentira. Crowe demonstra todo o pragmatismo de um tenente que não entende tons cinza. Hathaway é puro desespero em sua jornada rumo ao inferno. Há, ainda, a grande revelação, Samantha Barks, que evoca o desamparo de uma jovem que deve sacrificar sua própria felicidade em favor do amado.

Auxiliando um roteiro que percorre tantos ambientes e épocas, a direção de arte é inteligente ao não buscar um realismo óbvio, preferindo criar um visual estilizado, que reflete os sentimentos e dá à obra um leve tom de fábula. Portanto, a fábrica surge clara, organizada e asséptica, e suas funcionárias utilizam um uniforme azul virginal, enquanto o porto é escuro e sujo, e os ocupantes trajam negro. As próprias prostitutas parecem alegorias, com seus cabelos e maquiagens exageradas. Da mesma maneira, a taberna dos Thénardier, com sua iluminação dourada, ressalta o aconchego e o risco de ser enganado daquele local, em contraponto com as ruas sombrias pelas quais Cosette caminha. E se é óbvio o simbolismo do caixão na barricada dos jovens revolucionários, essa surge corretamente improvisada e mal feita.

Considerando o fôlego do empreendimento da adaptação de material tão denso (e canônico), é com tristeza que se constata que Tom Hooper não possui a força necessária para domar o material. As tramas estão muitas vezes desconexas, como se não ocorressem em um mesmo universo. O tom farsesco adotado nas cenas que envolvem o casal Thénardier, embora funcionem individualmente, pelo talento de Cohen e de Helena Bonham Carter, está dissociado de todo o drama pesado do restante da trama, e o que deveria servir como alívio cômico, acaba apenas jogando o espectador para fora da narrativa e diminuindo o impacto do drama de Cosette. O diretor ainda falha em criar empatia por personagens da trama que envolve os jovens revolucionários, uma parte substancial do filme, pois é impossível saber pelo que lutam ou o motivo de se entregarem a um combate tão desigual.

O problema maior, entretanto, é a abordagem visual do diretor, completamente ilógica. No início do longa, ele utiliza uma câmera trêmula, que deveria conferir um clima de urgência à narrativa, mas que só causa irritação. Depois disso, seguem-se uma série de planos inclinados, personagens no canto da tela e grandes angulares que não parecem ter nenhum propósito narrativo. Algumas dessas cenas funcionam, é verdade, mas, devido ao acúmulo, é mais fácil acreditar em mera obra do acaso do que em competência técnica. A verdade é que Tom Hooper parece acreditar ser um grande artista, e por isso cada cena deve ter sua assinatura, independente do todo a qual pertença, o que só produz antipatia para seu trabalho. Ele parece uma criança testando todas as funções do seu novo brinquedo, como no momento absurdo dentro do monastério no qual muda o foco duas vezes em questões de centésimos. É como se quisesse estar sempre lembrado o público, “olha, estou aqui dirigindo”. Infelizmente sempre percebemos isso.

Contando com um final artificial, que tenta mandar os espectadores para fora da sala com uma sensação, falsa, de completude, o filme sobrevive realmente devido ao esforço dos atores, aos aspectos técnicos empregados e às belas canções. No final, ficam na lembrança os aspectos positivos, mas, acima de tudo, a certeza de que poderíamos ter visto uma obra muito melhor.

 

[tresemeia]