O Pequeno Nicolau

Historiador e filósofo de formação, flamenguista de coração, João Gabriel encontra na “kinomania” o passatempo do curioso que se acha entendido. E, a partir de agora, avoluma as fileiras dos colaboradores do Cinema de Buteco. 

SE A DELICADEZA É ALGO SUBLIME, então posso afirmar, sem sombra de dúvida, que o Nicolau, interpretado pelo pequeno e serelepe Máxime Godart, é uma das muitas manifestações sublimes da sétima arte. Em seu cotidiano inocente, Nicolau e sua turma nos brindam com concepções ímpares sobre os mais variados motifs do universo infantil. Um saudosismo do fim dos anos 1950, época do lançamento dos originais do Le Petit Nicolas, preenche maravilhosamente o filme de cabo à rabo através de uma paleta de cores e objetos charmosíssimos, ajudando a preservar esse ludismo infantil que transborda na tela a cada take.

Um beijo, um abraço e muitas felicitações para o diretor de fotografia Denis Rouden e para o diretor de figurino Pierre-Jean Larroque! Je T’aime! Vocês moram no meu coração! Pontos também para o diretor e roteirista Laurent Tirard que conseguiu preservar a simplicidade nas relações entre os personagens (sem apelar para o simplório, muito típico dos filmes infantis) sem cair no clichê salpicado de mesmismo.

As preocupações na escola, a vida em família, a primeira paixonite (pela Maria Edwiges, que só tem o nome de santa e faz o diabo com o nosso querido le petit) são as tônicas das primeiras experiências de meninos em diálogo com o mundo adulto, tudo isso, em contributo para o carro chefe de todo o filme: a amizade. E não é qualquer amizade, eu falo da amizade infantil, senhoras e senhores! Aquele sentimento marveilleux, irrestrito e completamente desprendido que marca a vida de todos nós. Caso você tenha sido um Kaspar Hauser enquanto infanto, favor assistir Conta Comigo e/ou Os Goonies para um curso básico. Ela é a linha mestra de toda a película e é, devidamente, exercitada, esticada e enrolada pela turba (pois é,  não é turma de novo, é turba mesmo, com trocadilho e tudo) que acompanha o personagem principal dá o balanço temperado com o desequilíbrio ideal para o roteiro, diga-se de passagem, baseado na obra supracitada de (levanta e faz a reverência) René Goscinny, roteirista da minha infância e das historietas de Asterix, Obelix e compania limitada.
Rapidamente, de posse do famoso en passant, falemos dos moleques: Alceu é o melhor amigo do Nicolau, um gordinho compulsivo, de personalidade explosiva e com um quitute sempre à mão e um conselho destemperado à boca. Godofredo é o elemento riquinho do bando, seu ar meio blasée, munido de um (bom-) humor inteligente, associados às fantasias escalafobéticas, são um caso à parte. O sardento Eudes, que quer ser bandido e está sempre disposto a colocar a força física em favor dos amigos ou contra, dependendo do caso. O Rufino, que é a versão magricela do Topo Gigio, e sonha em ser policial assim como o seu velho. O Joaquim e seu irmãozinho, que (coitados, convenhamos, a culpa não foi deles) ajudaram a causar todo o mal entendido. O loiríssimo e CDFíssimo Agnaldo, sempre em contradição entre os seus princípios de dedo-duro e o amor aos amigos. E o meu preferido, Clotário ou Clóvis (depende de que lado do Atlântico lusófono você viu, está vendo ou vai ver o filme) o menino desatento que senta no fundo da sala e quer ser le champion cycliste, mas que por enquanto só é o campeão dos castigos.Todas essas características e muitas outras que não couberam aqui tornam a vida do pequeno Nicolau tão especial e, de algum modo que só o cinema produz, fazem-na tocar em cada um de nós de uma maneira diferente.

Por fim, menos teorias e impressões e um pouco de mão na massa. No filme, a vida pacata e feliz de Nicolau é abalada por uma série de acontecimentos que só a cabeça de uma criança pode ordenar daquela maneira, digamos, graciosamente caótica. O conto do Pequeno Polegar, que é abandonado pelos pais em plena floresta, o relato de Joaquim, um de seus amiguinhos, sobre o nascimento do irmãozinho mais novo e uma conversa dos pais (Valérie Lemercier e Kad Merad, ambos ganhadores de Césares) mal escutada atrás da porta, fazem Nicolau entrar em pânico sobre o seu futuroem família. Aquise finda a minha resenha meio rasurada, até porque, se me escapam mais algumas linhas, serei devidamente apedrejado por crime de spoiler. Bom filme!

Uma curiosidade: O Pequeno Nicolau ficou em cartaz no Rio de Janeiro por mais de um ano.

Título original: Le Petit Nicolas

Direção: Laurent Tirard

Produção: Eric Jehelmann, Genevieve Lemal, Alexandre Lippens

Roteiro: Laurent Tirard

Elenco: Maxime Godart, Valérie Lemercier, Kad Merad, Vincent Claude, Victor Carles

Lançamento: 2009

Nota:[quatro]