por Julie Ribeiro
O Caso Richard Jewell (2019), dirigido por Clint Eastwood, e escrito por Billy Ray, a partir do artigo de Marie Brenner, acompanha a história real do segurança Richard Jewell (Paul Walter Hauser). O personagem-título é apresentado, inicialmente, como alguém humilde, solícito e subserviente, como na relação estabelecida com o advogado Watson Bryant (Sam Rockwel), logo no início do filme: ele é solitário, sem jeito, acima do peso e não se enquadra muito bem na sociedade. No entanto, Jewell se revela diferente quando joga videogame em seu intervalo no trabalho, atirando com habilidade e vontade.
Ele logo muda de emprego e vai trabalhar no campus de uma Universidade, onde fica claro que ele tem uma personalidade metódica, rigorosa, e acredita em lei e ordem: anota o que as pessoas dizem para sempre fazer tudo correto. A sua tentativa pelo certo acaba gerando sua demissão, uma vez que sua postura causa reclamações no campus, já que os estudantes defendem que sua agressividade causa insegurança entre eles. O grande sonho de Jewell era trabalhar na polícia e lutar contra os bandidos; enquanto isso não acontece, ele mostra vigor nos treinos de tiro. Homem que quer ajudar e tem apreço por armas, mas acaba incompreendido e mal visto pela sociedade: prato cheio para a concepção de um terrorista. Eastwood estabelece assim a construção do protagonista, e nos faz oscilar de opinião a medida em que a história vai sendo contada.
Jewell consegue então, um trabalho como segurança nas Olimpíadas de Atlanta, e segue o seu caminho de cordialidade, mesmo sendo motivo de zombaria entre policiais e jovens. Ele vê uma mochila e se preocupa, mas é alarme falso, era apenas um jovem levando cerveja para os amigos. Esse fato já é um sinal do diretor para que fiquemos atentos, já que até que a narrativa se estabeleça, informações dúbias vão se formando ao avançar do filme. Uma segunda mochila é achada pelo próprio Jewell, que sugere evacuação, e quando pensamos ser mais um exagero do segurança, uma ligação para o famoso 911 revela que sim, havia uma bomba no parque. A bomba estoura.
A partir daí, a vida de Jewell muda drasticamente: ele se torna um heroi nacional, já que foi quem descobriu a bomba, propôs a evacuação e evitou mais mortes (no total, o atentando causou 2 mortes e 100 feridos). Ele é convidado para programas de TV, e mantendo-se humilde, diz que apenas fez o seu trabalho. Vira notícia no país, na TV e uma editora o procura para que sua história vire livro. O personagem-título passar a ser enxergado, a ter uma voz que nunca ousou usar, a ele é atribuída uma identidade, e ele passa a pertencer de fato, à sociedade.
Contudo, o heroísmo concedido a Jewell começa a dissipar com o início das investigações. Tom Shaw (Jon Hamm), é o responsável do FBI para descobrir o que aconteceu. E a história tem nova reviravolta, já que Jewell passa a ser o principal suspeito do atentado, a partir de um artigo publicado na primeira página do Atlanta Journal pela ambiciosa jornalista Kathy Scruggs (Olivia Wilde). O que nos é mostrado a partir daí são elementos que nos fazem desconfiar desse personagem, tão correto e inofensivo à primeira vista. Um circo de repórteres é formado em frente à casa do agora acusado, que já foi julgado pela opinião pública, mesmo sem provas. Bobi Jewell (Kathy Bates), faz a mãe acuada, que nunca duvida da inocência do filho. Jewell retoma contato com o advogado Bryant, que vai ser figura importante na tentativa de provar a inocência do segurança.
O que o filme se propõe a fazer é suscitar questionamentos sobre a necessidade de termos heróis. E em como a imprensa ajuda nessa construção e desconstrução. Além de também fabricar vilões, de acordo com a conveniência. Eastwood faz uma crítica à imprensa, e a sua facilidade em definir pessoas, mas o que sobressai é a necessidade do diretor em ser fiel à história. Por vezes, a sensação é que estão todos a serviço de contar aquele absurdo, quase como um relato histórico de utilidade pública, que soa documental. O filme é bem executado, como se mantivesse um esforço para ser correto, mas sem brilhantismo ou efeitos, como o próprio Jewell. Eastwood demonstra certa decepção com o país, mas não se aprofunda nas histórias pessoais – os personagens não brilham ou exigem muito dos atores.
Com exceção do protagonista, que inclusive, é bastante referenciado a partir da fala ou do olhar dos outros, os outros personagens não têm muitas cenas marcantes. Essa é uma história de alguém desenhado sem personalidade, sem forças, que por vezes assume o silêncio por escolha, sendo cordial. A mãe e o advogado falam e fazem por ele. Nesse sentido, quem assume a retórica de Jewell é Bryant, papel que não oferece muitos desafios a um ator como Sam Rockwell. Outra que fala por Jewell é sua mãe, enfrentando policias e repórteres, e também em comunicado ao presidente. Bates entrega uma das cenas mais emocionantes do longa, juntamente com a descoberta da verdade pela repórter, reepresentada por Wilde. Nessa sequência, os repórteres – sempre barulhentos -, ficam em silêncio pela primeira vez.
Apesar do momento final, a repórter Scruggs (que na vida real tinha depressão e morreu de overdose de medicamentos em 2001), é superficial e estereotipada, fazendo com que o talento de Wilde seja desperdiçado no filme. É constrangedora a cena em que ela tenta obter informações do agente do FBI, Shaw, em troca de sexo. O personagem de Hamm, assim como a de Wilde, é vilanizado no filme, como se os dois representassem os males da imprensa e da polícia/governo. Entretanto, é chata, forçada a desgastante a insistência do agente do FBI e da repórter em provarem a culpa de Jewell. Soa clichê e superficial, e o que o Eastwood tenta criticar com sua versão do caso é justamente o que ele faz no filme: define heróis (Jewell, o advogado e a mãe) e insiste em nomear vilões (Sruggs e Shaw).
Se existe o questionamento de que a imprensa reporta fatos ou induz o público, não deveríamos considerar a mesma pergunta para um cineasta? Que estabelece princípios para a construção de uma verdade, ainda que ficcional? O que soa perigoso, para mim, assim como em outros filmes recentes do diretor, com personagens baseados em histórias reais, é a tentativa de romantizar e transformar homens comuns em herois e/ou em vítimas
Entretanto, algumas cenas são bem arquitetadas (afinal de contas, estamos falando de Eastwood), principalmente as que mostram a fragilidade de Jewell. É de extrema sensibilidade a interpretação de Hauser, por exemplo, nos momentos em que finge que assina um documento do FBI; em que, de bom grado, aceita fazer uma gravação falando que há uma bomba no parque; ou ainda, na cena em que policiais revistam a sua casa, e ele se mostra solícito. Soam absurdas as cenas em que Jewell guarda um pedaço do banco de onde a bomba estava, ou em que descobrimos que não pagava impostos, ou sobre a quantidade de armas que ele tinha em casa.
Jewell é construído como um homem simples e compreensivo, que aceita tudo e não se revolta com nada. Isso nos aproxima dele, e ao mesmo tempo nos revolta. A simplicidade na construção do personagem é o que nos faz duvidar de como ele pode ser tão idiota e inocente, aceitando as posições que o colocam. Depois de todo o turbilhão que mudou totalmente a sua vida, Jewell finalmente tem voz. E percebemos que ele tem consciência de quem é, que a sua invisibilidade sempre foi escolha. Estabelecido isso, ele decide que é hora de ir embora. Foco na porta com insígnia policial até então admirada.
Passam-se algumas semanas e o FBI devolve o que pegou da casa de Jewell. Não são as mesmas coisas, assim como a vida dele jamais será a mesma. Close na foto na parede, de Jewell fardado: mesmo após toda a injustiça sofrida, há orgulho em servir e lutar contra o mal. Clichê. Sem a genialidade vista tantas vezes no cinema de Eastwood. Espero que o diretor volte a fazer filmes de ficção.