O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica do filme Napoleão possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
FELIZMENTE (OU NÃO), não guardo qualquer recordação do ensino fundamental ou ensino médio. Pouco me recordo das aulas de história, o que lamento profundamente, já que poderia ser um conhecimento a mais para compartilhar na análise de Napoleão (Napoleon, Ridley Scott, 2023). De qualquer forma, independente dos fatos, o mais importante é (tentar) pensar na obra pelo que ela é. Vamos deixar as imprecisões históricas para quem estudou de verdade o assunto.
A primeira coisa que você precisa saber é que existem duas versões de Napoleão. Com 2h38 de duração (praticamente o mesmo tempo de duração de A Casa Gucci e O Último Duelo, trabalhos mais recentes do cineasta), a versão que chega aos cinemas não é exatamente um primor narrativo, já que é prejudicada pelos cortes, que deixam o espectador confuso com o abandono de personagens, passagens de tempo etc. A versão completa será lançada no streaming Apple TV+. Ela terá mais de 4h de duração (o que ainda é pouco comparado com as 5h30 de uma elogiada produção de 1927) e torço para que os problemas narrativos sejam resolvidos (como aconteceu em Cruzada, por exemplo).
Porém, verdade seja dita. Repetindo a ideia de analisar e pensar uma obra pelo que ela é, pouco importa se essa é uma versão “reduzida” ou “comercial”. É a versão disponível e será a que a maioria das pessoas assistirá.
Escrito por David Scarpa (roteirista de Todo o Dinheiro do Mundo, também dirigido por Scott), Napoleão segue a rápida ascensão militar do protagonista vivido por Joaquin Phoenix, suas vitórias no campo de batalha e do seu conturbado relacionamento com Josephine (Vanessa Kirby). O recorte ambicioso promove alguns dos principais obstáculos do longa. É como se, ironicamente, faltasse tempo para desenvolver melhor certas passagens e ficasse dividido entre a complicada relação entre o casal e as batalhas.
A dinâmica do casamento coloca Napoleão em uma verdadeira inversão de papéis. Fora de casa, ele pode ser a pessoa mais importante da França. Mas lá dentro, ele é só um submisso atendendo aos desejos da sua domme (dominadora, dentro do contexto de BDSM). A dependência de Josephine é a segunda maior fraqueza de Napoleão, perdendo apenas para a sua fome insaciável por poder. Para um homem considerado o maior estrategista de todos os tempos, o filme Napoleão deixa essa faceta de lado para dedicar mais atenção às suas cenas de ação. Se lembrarmos de Cruzada (Kingdom of Heaven, 2005), vamos ter a certeza que Scott já conciliou melhor estratégia x ação.
Phoenix está muito bem no papel de um homem vaidoso e blasé. Com suas expressões de desdém (ou ignorância sobre qualquer coisa diferente das estratégias de guerra), os trejeitos do ator criam cenas realmente engraçadas, como quando ele usa um caixote para verificar uma múmia no Egito ou nas várias vezes em que está com o nariz arrebitado, meio que tentando parecer mais importante. Meu momento favorito, sem dúvidas, envolvem as transas com a esposa. Phoenix age como um coelho no cio, metendo rapidamente e sem parecer sentir o menor prazer no momento. A primeira trepadinha é hilária, com direito a uma expressão impagável de Josephine, como se pensasse “mas já?”.
Scott, um diretor acostumado a comandar grandes épicos, como Gladiador e Cruzada, faz basicamente o que se espera. E o problema talvez seja exatamente esse. Ao citar esses dois filmes como referência, criamos a expectativa de ver algo diferente em cena. Não é como se as várias cenas de batalhas fossem medíocres (pelo contrário, são muito bem construídas e muito bonitas), mas não causam o mesmo impacto quando comparamos com trabalhos anteriores.
Talvez um grande culpado por esse sentimento seja a ausência de um antagonista claro. Desde sua estreia em Os Duelistas, Scott sempre gostou de trabalhar com dois personagens fortes entrando em conflito. Russell Crowe e Joaquin Phoenix, em Gladiador; Russell Crowe e Denzel Washington, em O Gângster; Harrison Ford e Hutger Hauer em Blade Runner etc. O verdadeiro inimigo de Napoleão é ninguém menos que ele próprio, já que seu ego e vaidade são responsáveis por sua ruína. Sem um “vilão” para combater o protagonista, Scott comete o erro de se apoiar apenas na qualidade de Phoenix e nas belas batalhas, e isso não funciona tão bem assim…
Para um lançamento de um cineasta tão experiente, é frustrante constatar que Napoleão é uma obra com um visual maravilhoso, assim como todo o trabalho de figurino, direção de arte, e suas belas sequências de ação, mas mesmo em seus melhores momentos, parece faltar aquele diferencial presente em Gladiador ou mesmo Alien, fugindo dos épicos da versátil carreira de Ridley Scott. Ao esquecer de contar a história do seu filme, Scott é devorado pela imensa história de um homem de 1,68m de altura e mostra seus próprios conflitos com vaidade e ego.
PS: Até quando vamos ver filmes estadunidenses que tratam o seu idioma como o único do mundo? De todos os problemas, o que mais me incomodou é ver a França falando inglês. Obviamente, esse é um problema sem solução e muito ligado ao lado comercial, mas não deixa de causar desconforto.