Não morra antes de assistir: Ran

De Akira Kurosawa. Com Tatsuya Nakadai , Akira Terao , Jinpachi Nezu , Daisuke Ryu , Mieko Harada

Akira Kurosawa é conhecido pela beleza plástica de seus filmes. O cuidado com que compõe as cenas, com que pensa as coreografias enche os olhos de quem vê, ao mesmo tempo em que serve de forma mais que adequada à suas histórias, cuja característica também bem conhecida é a dramaticidade e a abordagem da honra, componente que parece encontrar pano de fundo ideal no Japão do século XVI, onde se passam muitas de suas histórias.

Ran (ao lado de Os Sete Samurais e Sonhos) é com certeza um de seus melhores filmes. A maneira épica com que é contada a história de Hidetora (interpretado por um impressionante Tatsuya Nakadai, costumeiro colaborador de Kurosawa) rei que aos 70 anos decide distribuir em partes iguais seu reino, sendo que ele será governado pelo filho mais velho, contrapõe a forma como trata dos dilemas do homem ao se dar conta de sua miséria e da sua capacidade de corrupção, contra a qual na maioria das vezes não há como lutar.

A história é contada de forma quase teatral. Tanto no ritmo das cenas (grandes diálogos encenados sem muita movimentação na maioria das vezes), na atuação (é um exagero adequado), na maquiagem e no figurino (vencedor do Oscar daquele ano). Mas o ponto forte é a forma como Kurosawa trata as cores. Como as mistura. Pensando que ele tinha o sonho de ser pintor quando criança tudo faz mais sentido. Abusando dos planos gerais a fim de mostrar a grandiosidade das situações vividas, posicionando os atores de forma a produzir efeitos no espectador que transmitem a força e realeza, e ao mesmo tempo a fraqueza e tristeza deste rei que, vê diante de seus olhos o reino por ele contruído ruir. Assim como a união de sua família. Destaque para a o fim da belíssima cena da invasão do castelo. Além da dramática trilha sonora, reparem na forma como contrasta as cores do exército com as cores do fogo que incendeia o lugar. Ao meio a figura do rei Hidetora, desesperado e impressionado com a capacidade de destruição que sua família mostrou. Sensacional.

Lançando mão deste caráter meio fabular que a história toma, por se passar numa época quase lendária da história da china, Kurosawa (que escreveu o roteiro com mais dois roteiristas baseando-se livremente em Rei Lear de Sheakespeare) transforma a história de traição, inveja e ambição em um debate sobre as relações humanas, precárias na medida em que a possibilidade de se dominar o outro se evidencia. Este debate é encenado com perfeição por Tatsuya Nakadai. O grande questionamento e drama vividos pelo rei Hidetora, que vai da realeza à loucura, à culpa ao desespero e à morte (algo reforçado pela belíssima maquiagem), é angustiante e ao mesmo tempo universal. Não há como não tomar partido de seus questionamentos: como exigir de seus filhos que ajam com o mínimo de respeito entre si e pelo clã, já que toda a riqueza que ele possui foi conquistada à custa de sangue de inocentes? Como ele pode esperar algum tipo de comoção, já que no passado foi um assassino que cometia os mesmos crimes que vê seus filhos cometendo, uns contra os outros e contra o reino? Como lidar com a tristeza daqueles cuja família foi destruída por sua espada? Se Hidetora prefere que sua nora o odeie ao invés de vê-la sofrendo pela morte de seus pais é porque se deu conta de que um reino constituído desta forma, não poderia ter destino diferente. E tudo isso, só consegue ser percebido pelo espectador da forma que é, devido à atuação de Nakadai. Eu poderia ficar descrevendo várias cenas em que nos impressionamos com sua entrega total ao personagem. Mas é melhor ver o filme.

Interessante perceber que além do poder, a figura da mulher também é decisiva para deflagrar os conflitos. A outra nora, esta vingativa (pois também não conseguiu superar o massacre liderado por seu sogro) vale mais que mil exércitos, e quando nos damos conta, seu ódio estava por trás da motivação dos irmãos com quem se envolve para alcançar seu objetivo: ver o castelo onde vivera, agora dominado pelo clã de Hidetora, destruído, assim como o clã.

O louco que parece ser o único a enxergar o andamento da situação (uma espécie de bobo da corte que parece ser o único lúcido), o questionamento sobre a existência de Deus (ou Buda no caso) que fica claro com a última cena do filme, e uma única resposta que fica no final: a raça humana foi um projeto que deu errado. E talvez a única solução seja jogar de acordo com as regras do jogo. Que no fim das contas não tem vencedor. Só perdedores. Assistam Ran. É um filme grande, lento (não precisa ver tudo de uma vez também não é mesmo?), mas que é obrigatório pra quem gosta de cinema oriental. Recomendo.