A Menina Que Roubava Livros

I try to sing along

But I get it all wrong

‘Cause I’m not

 

I swat ‘em like flies but like flies the bugs keep coming back NOT

But I’m not

All hail to the thief

 

(Radiohead, 2+2=5)

 

“Se seus olhos pudessem falar, o que diriam?”

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Era uma vez Liesel Meminger. Sem casa, sem identidade, Liesel vivia à sombra de uma guerra que ainda havia de se concretizar. Liesel tinha amigos invisíveis e paixões platônicas, madrasta e inimigos arquetípicos, e vivia num mundo de cores realisticamente cinza e marrons, a despeito do maniqueísmo preto e branco de seus habitantes. Embora até a Morte fosse fascinada por Liesel, a menina sofria de um grave problema.

(Não, não era um problema moral: roubar, aqui, fossem livros ou comida, não a destituía de seus valores de grandeza.)

Como personagem literário que era, Liesel sofria de grave problema intelectual: afinal, ela não era lá muito diferente de uma Branca de Neve.

O livro de Markus Zusak, embora alcance louros literários, já provou que não é, de fato, nenhuma pièce de résistance – o que não é propriamente demérito para o autor. Trata-se de uma fábula contemporânea, com tons de sublimação e moral elevada. O cinema de Brian Percival, entretanto, transformou a narrativa em leitura insossa, que, se não agride, não a engrandece: parece fruto de uma preguiça sem tamanho.

“Palavras são vida, Liesel!”

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Brian Percival é um diretor formado pela TV. Isso talvez explique a influência dessa linguagem – em detrimento da cinematográfica – durante quase toda a projeção. A direção de fotografia de Florian Ballhaus (de “O diabo veste Prada”) mistura aturdidamente quadros de boas piadas visuais (como o plano que revela a professora seguida ao rosto do Führer, revelando como Liesel enxergava as relações de poder) e de poética composição (como aquele em que a menina divide a cena com uma cama vazia, em referência à prematura morte de seu irmão, logo na primeira cena) a excessivos close-ups e planos americanos – e há até uns dois momentos em que o diretor se apropria de establishing shots, recurso típico de séries de tv, para situar o espectador. Infelizmente, essas composições contribuem negativamente para a narrativa, porque tendem a ressaltar muito mais o melodrama que o drama em si.

(A esse propósito, cabe diferenciar, ainda que didaticamente, as duas concepções: drama é ação; criado com o teatro grego, ele permitia que a representação tivesse força suficiente para envolver o público. Trata-se, pois, de elemento que nasce na narrativa e se reflete no espectador. Já o melodrama é recurso típico do teatro burguês do século XVIII, em que a música (do grego, melo) incidental ressaltava o sentimentalismo da cena, exacerbando e explicitando a ação (drama) dos atores. É elemento que potencializa a emoção e, por isso, perigoso: seu uso indiscreto pode até entreter o público médio; ao público mais atento, entretanto, passa por mera muleta formulaica, “de fazer chorar”.)

Dito isso, é fácil afirmar que Percival valoriza em demasia o melodrama, em cenas desnecessárias ao andamento da história, mas fundamentais à muleta – como aquela em que Rosa vai buscar sua filha no colégio para dar-lhe uma notícia, pondo em risco um segredo que ameaçava a família. Seu desfecho, apesar de trazer certo alívio ao público, serve para criar tensão desnecessária e que prejudica a própria verossimilhança do conto.

Ainda assim, formalmente, a narrativa tem pontos fortes. Mas, em geral, parte do principio da boa-ideia-jogada-fora. A câmera subjetiva que nos introduz à história, por exemplo, caminha sobre nuvens e traz consigo duas funções primordiais: na primeira, trata de apresentar seu narrador – que desvela cruelmente nossos destinos – e desvendar as cores da trama, que, apesar de “realistas” (os tons acinzentados revelam a frieza do momento histórico; as cores marrons, o acolhimento e a segurança do lar, ainda que não tenha a “vivacidade” das cores quentes), partem para o já dito tom fabulesco; na segunda, tende a criar uma interessante rima com o clímax (que é, enfim, desperdiçadíssimo) da própria narrativa.

Outro óbvio exemplo está na narração atribuída à Morte, que parece, a princípio, um dos pontos fortes da história: afinal, sua capacidade onipresente e absoluta permite reflexões que, com qualquer outro, pareceria didático, “forçado”. Substancialmente, entretanto, tudo desmorona quando:

a) sua personificação ameniza o terror que a Ceifadora representa às expectativas humanas. Num filme sobre esse terrível período histórico, amenizar a Morte pode ser venal;
b) ao fim do percurso narrativo, ela novamente surge como um grande deus ex machina: resolve pontas soltas em poucos minutos e ainda nos traz uma das falas mais – ahn – “filosóficas” (de ressaltadas aspas) de todos os tempos: com um potente “sou assombrada pelos humanos”, nosso narrador revela, num misto de excitação e lágrimas dos espectadores, que nós somos seu objetivo – ainda que, durante sua história, a Ceifadora se mostre completamente indiferente a todos nós, à exceção de Liesel.

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A menina, aliás, é interpretada com grande esforço pela canadense Sophie Nélisse, que faz trabalho justo, mas sem grande expressão. Geoffrey Rush está, como sempre, competente ao construir seu maltrapilho Hans (embora nem ele pareça acreditar nos meandros de seu personagem). Mas é Emily Watson quem se destaca com sua madrasta Rosa: uma personagem que poderia, facilmente, cair em vilania e antipatia por qualquer atriz menos competente, ganha, com a interpretação da inglesa, cores dialógicas e complexas. Quem desaparece mesmo durante a projeção é o Max de Ben Schnetzer. Apesar da força de sua figura dramática – um judeu fugindo das forças nazistas –, o ator parece não ter forças para sustentar a ação. Não é à toa que o primeiro livro que Liesel lê para ele é “O Homem Invisível”, de Wells: ele é a contraparte que não existe na História, o homem que vive nas sombras e que, como a menina, busca entender-se e encontrar sua identidade (ela, pelo adolescer; ele, para se esquivar do regime). O ator, entretanto, perde-se em melodrama e choro sem fim: sua atuação rasteira passa tão despercebida quanto o livro que lhe contam.

O grande problema da história, por fim, parece estar nas opções de Percival para seu conto: entre pintar a fábula de cores assumidamente fortes ou buscar tintas realistas para sua narrativa, o diretor permanece em cima do muro: faltam-lhe ritmo, estrutura, identidade; falta-lhe delicadeza para construir metáforas, e não metralhar comparações num fuzilamento intelectual do público (“Jesse Owens”); falta-lhe coragem para enfrentar a Guerra, e não esperar que ela passe à margem; falta-lhe ambição.

Tudo aquilo que a pequena Liesel aprendeu pintando palavras no porão. Metafórica e literalmente.

Título original: The Book Thief
Direção: Brian Percival
Gênero: Drama/Guerra
Roteiro: Markus Zusak/Michael Petroni
Elenco: Sophie Nélisse, Geoffrey Rush, Emily Watson 
Lançamento: 2013
Nota:[duasemeia]