por Rafael Azzi
A série de ficção científica Jornada nas Estrelas teve seu início na década de 60. Dessa primeira série se originaram diversos filmes e outros programas de televisão. O programa seguia semanalmente as aventuras interestelares do capitão James T. Kirk (Willian Shatner) e de sua tripulação a bordo de uma nave da Federação dos Planetas Unidos: a USS Enterprise. O grupo viajava em missão pacífica “para explorar novos mundos, para pesquisar novas vidas, novas civilizações, audaciosamente indo onde nenhum homem ninguém jamais esteve antes”, como dizia o monólogo de introdução narrado no início de cada episódio.
O programa compensava, de forma extraordinária, os limitados recursos da época no que se refere a efeitos especiais com imaginação e boas histórias. Em relação à tecnologia, a série antecipou e mesmo inspirou o desenvolvimento de muitos aparelhos utilizados atualmente, tais como o computador pessoal, o laptop, a videoconferência e o telefone celular. Altair 8800, o primeiro computador pessoal, teve seu nome inspirado em um dos planetas mostrados na série. O design inovador do celular com flip da empresa Motorola foi influenciado pela aparência do comunicador utilizado pela tripulação. Não por acaso, o telefone foi batizado de Startac (alusão a Startrek, o nome original da série). Até mesmo um ônibus espacial da NASA recebeu o nome de Enterprise em homenagem ao clássico programa.
O seriado não inovou apenas por apresentar e inspirar novas tecnologias: o mundo do futuro mostrado no programa colocava em evidência indiscutíveis avanços sociais. Após os eventos (ainda) fictícios da terceira guerra mundial nuclear e da guerra de eugenia, a humanidade teria efetivamente aprendido com seus erros e abandonado a violência como forma de resolução de conflitos. No futuro apresentado, a emancipação e a evolução da humanidade não eram resultado apenas de avanços tecnológicos, mas também ao desenvolvimento da razão humana e a abertura à possibilidade de diálogo. Dessa forma, a série mostra um planeta Terra livre de conflitos globais e preconceitos culturais. Trata-se de um pensamento radical e audacioso para a década de 60, considerando-se o fato de que, na época, o contexto era de grande tensão devido a eventos como a Guerra Fria, o conflito no Vietnã e a luta por direitos civis igualitários em questões raciais e sexuais.
Assim, a tripulação da Enterprise foi intencionalmente constituída como multirracial e multigênero. Nesse sentido, entre seus membros destacavam-se os personagens Hikaru Sulu (George Takei), um asiático que contrário dos restante dos papeis desse tipo na TV da época não era estereotipado; e Nyota Uhura (Nichelle Nichols), uma mulher afro-americana. Observa-se que, antes de Uhura, nenhuma mulher afro-americana havia aparecido em papel de destaque em uma série de TV regular. A personagem inclusive protagoniza a cena na qual houve o primeiro beijo interrracial roterizado na televisão americana, o que constituía um grande tabu para o período. Merece ser citado ainda o russo, Pavel Chekov (Walter Koenig), também membro da tripulação. Tal fato é significativo ao lembrarmos que Jornada nas Estrelas foi feito no auge da Guerra Fria e da corrida espacial. A seleção do elenco, ao reunir um asiático, uma mulher negra e um russo como importantes personagens da série, se mostrou realmente revolucionária e abalou as convenções de seu tempo.
A Federação dos Planetas Unidos também é inserida nesse contexto. Ela funcionava como uma espécie de versão ideal da ONU e tinha a intenção de mostrar ao público em geral a possibilidade da existência de um organismo internacional (ou interplanetário, no caso) que pudesse manter a liberdade, a paz, a união, a integração e o desenvolvimento entre os planetas, bem como de seus respectivos habitantes. A Enterprise fazia parte da Frota Estelar, o braço ao mesmo tempo científico, diplomático e militar da Federação. A sua missão de carater pacífico tinha como principal diretriz evitar que os seres humanos influenciassem ou interferissem diretamente no destino de outras raças e de outros povos. Este objetivo era, na verdade, uma corajosa crítica velada ao expansionismo americano e ao vigente envolvimento do país no Vietnã.
Muitas outras questões relativas ao período histórico eram refletidas pelos episódios da série, que buscavam retratar o autoritarismo, o imperialismo, o patriotismo, a moralidade, o racismo, a religião, os direitos humanos, o feminismo e o papel da tecnologia no desenvolvimento humano. De modo geral, os episódios de Jornada nas Estrelas defendiam um caráter humanista da sociedade, defendendo valores como compaixão, liberdade, justiça social e criatividade. Um dos temas recorrentes no seriado era o das sociedades utópicas e sem conflito, mas que na verdade esconderiam uma terrível realidade, assunto que pode ser interpretado como uma crítica baseada na teoria do recalque da psicanálise freudiana e na concepção junguiana de sombra.
As “religiões” em Jornada nas Estrelas são muitas vezes apresentadas sob a forma de cultos. Os deuses encontrados pela nave estelar Enterprise são geralmente falsos deuses que tentam impedir o potencial das criaturas de “audaciosamente ir” além e, muitas vezes, serviriam apenas para transformá-los em escravos virtuais.
Se, por um lado, a série procurava questionar a crença irrefletida no sobrenatural, por outro lado também expunha, de forma crítica, a submissão da humanidade à dependência tecnológica. Os computadores conscientes são geralmente mostrados como seres frios que trabalham sob regras rígidas e desumanas. A humanidade submetida a tais compudadores estaria então abrindo mão de sua liberdade.
O clássico vilão Khan também pode ser interpretado como uma crítica à ideia de que a tecnologia pode ser utilizada para melhorar os humanos. Ele é um ser desenvolvido geneticamente para ser superior mental e fisicamente a todos os outros humanos. Entretanto, trata-se de um individuo totalmente desprovido de qualquer consideração ou empatia por outros seres.
“Audaciosamente indo aonde nenhum homem jamais esteve”: o lema da série, inspirado em um folheto produzido pelo governo americano para o lançamento da sonda Sputnik 1, pode ser interpretado como uma máxima de filosofia humanista ao incentivar uma atitude verdadeiramente científica de abertura e de curiosidade em relação ao mundo e ao universo. A noção de que os indivíduos devem corajosamente buscar conhecimento e discernimento constitui a essência de todo pensamento humanista.
J. J. Abrams, diretor dos dois mais novos filmes da franquia, utilizou-se de um grande recurso da ficção científica que o possibilitou utilizar os icônicos personagens da série clássica sem ferir a consolidada continuidade histórica: os eventos dos filmes acontecem em uma linha do tempo paralela ao seriado original. Resta saber se os novos filmes de Jornada nas Estrelas conseguirão fazer jus a sua origem, unindo ficção científica e humanismo com maestria ou se serão apenas mais uns entre os tantos blockbusters de verão.
Rafael Azzi é filósofo. Em uma conversa vai de Nietzsche a Muppets em 9.8 segundos.
[cinco]