O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica de Green Book: O Guia possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
CRESCI ASSISTINDO ÀS COMÉDIAS QUE PETER FARRELLY DIRIGIU COM SEU IRMÃO BOBBY. Até hoje passo mal de rir imaginando a cena em que um garotinho cego compra um periquito morto. Por isso, é meio esquisito imaginar que Peter comandou Green Book: O Guia sozinho e que, mesmo com algumas tradicionais piadas grosseiras (e engraçadas, claro) consegue conduzir um autêntico longa que coloca humor em coisa séria para disfarçar sua superficialidade.
Vamos lá. Quero deixar claro que gostei sim do trabalho e por isso resolvi escrever essa crítica de Green Book. No entanto, “gostar” não significa necessariamente ignorar questões que poderiam vir a ser melhor trabalhadas. Gostei especialmente por conta das atuações, pelo carinho que tenho com os irmãos Farrelly (nem sabia que o filho de Bobby havia morrido em 2012 em decorrência de uma overdose), e por conta da trilha sonora.
Dito isso… Green Book provavelmente faz sucesso por retratar um passado não tão distante em que existia uma certa ordem bem perturbada das coisas e tratar esse tema com uma leveza um tanto incomum para os dias de hoje, em que temos tantas obras duras e cruas. Até acho que é válido tentar criar um produto voltado para pessoas mais conservadoras, como me parece o caso, mas fica aquela sensação de que poderíamos ir além, sabe?
Viggo Mortensen encarna um italiano tosco pra caralho, que deve ter algum nível de parentesco com a Magali ou o Diabo da Tazmânia. Mortensen aparece muito acima do seu peso para interpretar Tony Lip, o motorista racista que aceita um emprego de motorista de um pianista negro durante uma turnê pelo sul dos EUA. Ou seja, pelo inferno na Terra para negros.
O pianista é interpretado brilhantemente por Mahershala Ali, que consegue captar a essência de um homem tão reservado que passa a ter atitudes que beiram a arrogância ou a superioridade. Claro que são mecanismos de defesa para um homem que sofre com o fato de ser negro e gay, para um virtuose do piano que é contratado para as festas dos branquelos azedos e é impedido de usar o banheiro dos locais que se apresenta.
Talvez “superficialidade” não seja o termo mais adequado para descrever o desenvolvimento dos dramas presentes na narrativa. Acho que afirmar que se trata de uma produção tão simples e ingênua que não se preocupa necessariamente em aprofundar as possibilidades de discussão. Isso poderia ser um problemão se Ali e Mortensen não estivessem tão bem nas suas respectivas caracterizações.
É como se de certa forma, Farrelly tentasse incluir uma crítica ao racismo na sua filmografia e que fizesse isso usando ingredientes selecionados para agradar o público de hoje, tomado por uma onda conservadora em que os velhos fantasmas voltam à tona. O termo da moda é “passar pano” para racista, né? Mas isso significaria ignorar a parte que em que ele demonstra ter evoluído no final do filme.
Nem quero perder tempo entrando em outras discussões sobre a família do pianista, que parece ter ficado puta da vida porque a relação entre Don e Tony nunca foi de amizade etc. Prefiro valorizar aquela jam session incrível no bar, quando o pianista coloca em prática um pouco do que aprendeu ouvindo as músicas que Tony colocava no rádio durante a viagem. Ou elogiar mais uma vez a atuação desses dois monstros, que conseguiram colocar muita alma nas suas atuações, especialmente Mortensen com sua imitação perfeita da alma da fome.
Com leveza e sem compromisso com discussões mais elaboradas, Farrelly faz o típico filme sessão da tarde em que podemos enveredar por um caminho extremamente crítico ou adotar o mesmo tom paz e amor que o diretor conduz sua obra mais elogiada até hoje. Mas não sei você… Eu prefiro a época em que ele trabalhava com o irmão Bobby comandando comédias escrachadas.
(Para entender melhor o que estou falando sobre profundidade, recomendo o francês Intocáveis que fez um puta sucesso e falava dessa questão de uma forma muito mais eficiente)