Filme: Deuses (Mostra de São Paulo 2015)

Bogowie

Se você morre de pavor de agulha, sangue, órgãos e vísceras como eu (não contem a ninguém), precisará virar o rosto ou tapar a vista com as mãos algumas vezes ao assistir ao polonês Deuses: ao longo de suas duas horas de projeção, o longa não se contenta em concentrar diversas cenas nas operações cardíacas realizadas pelo protagonista e seus colegas, buscando posicionar sua câmera em ângulos variados que facilitem nossa visão de praticamente tudo que ocorre no corpo aberto dos pacientes. Pode ser uma decisão perigosa por afastar espectadores mais sensíveis, mas mostra-se a mais acertada por conferir realismo e ressaltar a urgência dos complexos procedimentos executados por aqueles profissionais.

Ambientado no interior polonês em meados da década de 1980 – ou seja, ainda sob a casta da Cortina de Ferro -, o roteiro escrito por Krzysztof Rak conta a história da luta do cirurgião Zbigniew Religa (Kot) pela causa dos transplantes cardíacos, que, vistos com desconfiança e mesmo pavor por motivos que iam da religião à ignorância, precisavam ser experimentados à exaustão até começarem a produzir resultados duradouros ou mesmo definitivos. Como experimentá-los, porém, sem tratar pacientes como cobaias e sacrificar vidas em prol de um avanço científico que poderia (e já pode) salvar milhares de outras? Este é o conflito moral que o longa apresenta já em sua primeira cena, em que uma menina não resiste a uma cirurgia e o Dr. Religa precisa responder pelo fracasso diante de uma pouco compreensiva comissão de ética.

O tema torna-se ainda mais difícil, claro, quando transferido para o âmbito pessoal – e é bem provável que muitos entusiastas de experiências médicas arriscadas abdicariam imediatamente de suas convicções diante da possibilidade de a “cobaia” da vez ser um ente querido. Há uma cena extremamente triste em Deuses, aliás, em que o Dr. Religa aborda um casal cujo filho acabou de sofrer morte cerebral e lhes pede que doem o coração saudável do rapaz a um paciente que precisa urgentemente de um transplante. Depois de muito ponderar e chorar, os dois consentem, momentaneamente consolados pela promessa de manter o coração de seu filho vivo no peito de alguém – e a dicotomia entre a frieza e a ambição do protagonista só tornam a situação ainda mais complexa.

É uma pena, portanto, que Rak e o diretor Lukasz Palkowski insistam em transformar Religa em uma caricatura antipática e arrogante do “cientista maluco”. Há uma cena, por exemplo, em que o sujeito demonstra uma impulsividade absurda ao interromper bruscamente uma conversa para pegar estrada e viajar centenas de quilômetros a fim de tentar convencer uma autoridade a financiar seus projetos – e por mais talentoso que Tomasz Kot seja (perceba sua postura curvada e seu descontrole com o fumo), é impossível não desprezar uma criatura que está obviamente mais interessada no próprio sucesso profissional que nas implicações humanísticas que este acarreta.

Não bastassem as tentativas patéticas de transformar Religa em uma espécie de Dr. House polonês, o longa ainda opta por uma trilha sonora engraçadinha que, além de não combinar com o tom cru adotado nas sequências cirúrgicas, ainda cria uma aura de deboche que, claro, não se mostra muito apropriada.

Interessante do ponto de vista histórico e tecnicamente bem executado, Deuses é uma boa indicação – especialmente para aqueles que não se importarem de conviver com um verdadeiro babaca durante 120 minutos.

Deuses (Bogowie Polônia, 2014). Dirigido por Lukasz Palkowski. Escrito por Krzysztof Rak. Com Tomasz Kot, Piotr Glowacki, Szymon Piotr Warszawski, Magdalena Czerwinska, Rafal Zawierucha e Marta Scislowicz.