Há um momento em Corações de Ferro (Fury, 2014) em que o soldado Boyd “Bible” Swan (LaBeouf) alerta o novato Norman (Lerman): “Você vai ver o que um homem é capaz de fazer a outro homem” – e como todo bom filme de guerra, este escrito e dirigido por David Ayer (Marcados para Morrer) traz como tema central a desintegração moral provocada pelo horror do campo de batalha naqueles que nele duelam e lutam pela sobrevivência. Não é uma questão nova, claro: as grandes obras-primas ambientadas tanto na Primeira (Nada de Novo no Front) e Segunda (Vá e Veja, O Resgate do Soldado Ryan, O Pianista) Guerras Mundiais quanto na do Vietnã (O Franco Atirador, Apocalypse Now, Platoon) sempre giraram em torno de homens comuns que, irreparavelmente marcados pela carnificina a que são forçados a se expor, dividem-se entre aqueles que conseguem manter resquícios mínimos de humanidade e aqueles que os perdem por completo.
Escrito pelo próprio Ayer, o roteiro de Corações de Ferro se concentra na trajetória da pequena tripulação de um tanque “Tiger I” do exército Aliado: liderado pelo experiente Don “Wardaddy” Collier (Pitt), o grupo formado pelo mecânico cristão “Bible”, o motorista mexicano Trini “Gordo” Garcia (Peña), o homem das bombas Grady “Coon-Ass” Travis e o recém-recrutado Norman, que se torna assistente de direção, encontra-se no coração da Alemanha nazista em 1945, ano que sabemos ser o último da Guerra. Cada vez mais encurralados e em desvantagem diante da superioridade dos tanques alemães, eles enfrentam uma missão atrás da outra e, durante o percurso, desenvolvem um forte senso de irmandade e companheirismo que resiste a suas evidentes diferenças de personalidade e à mágoa que “Bible”, “Gordo” e “Coon-Ass” parecem nutrir em relação a “Wardaddy” por culpá-lo pela perda de um antigo colega.
Experiente e tarimbado no dia-a-dia da guerra (por sua idade e expertise, não é difícil enxergá-lo como um veterano da Primeira Guerra), Don sabe o custo que não agir com frieza pode representar, e a primeira vez que o vemos é saltando de um esconderijo em meio aos escombros de uma batalha perdida e executando um soldado alemão com uma única e certeira facada na jugular. Capaz de manter-se respeitado por seus subordinados mesmo depois de tê-los decepcionado, Don é vivido por Brad Pitt como um sujeito calado e observador que, mesmo acostumado com as tarefas mais sórdidas, que vão de execuções a lutas sangrentas corpo a corpo, não deixou-se transformar no tipo de monstro que o campo de batalha costuma criar, mostrando novas nuanças como personagem à medida em que situações o obrigam a reagir – e o longo interlúdio ambientado na casa de duas mulheres alemãs não é um ponto alto da projeção apenas por revelar o profundo respeito ao ser humano nutrido por aquele homem, mas também pela sutileza com que Ayer constrói uma atmosfera de tensão progressiva confiando na capacidade do público de compreender o perigo que aquela situação representa ao invés de explicá-lo através de diálogos expositivos.
Em contrapartida, Norman representa a visão do espectador que, desacostumado às cenas chocantes que a guerra proporciona – e mesmo que não concentre-se no gore, Ayer não nos poupa de imagens de pilhas de cadáveres sendo arrastados por tratores, corpos de detratores pendurados em postes, amputações causadas pela explosão de bombas, etc -, precisa decidir-se quanto à postura que assumirá diante dos compromissos que “o melhor trabalho do mundo”, como Don & cia costumam brincar, proporciona: por mais bela que a ingenuidade do garoto possa soar a princípio, é ela que o levará a uma vala comum caso ele não aprenda a fazer o que espera-se dele; ou seja, “matar nazistas”. E se Logan Lerman revela-se a escolha certa para o papel por conferir-lhe inocência e uma expressão naturalmente apavorada, Shia LaBeouf apresenta uma das melhores atuações de sua carreira ao viver “Bible” como um rapaz bondoso e repleto de compaixão (a cena em que ele chora compulsivamente pela morte de um companheiro é tocante), ao passo que John Bernthal encarna a figura trágica de um homem corroído (literal e figurativamente) pela brutalidade e Michael Peña protagoniza um momento simples, mas extremamente revelador ao referir-se a seus adversários apenas como “carne”.
Absolutamente fabuloso do ponto de vista técnico, Corações de Ferro traz Ayer e seus montadores Jay Cassidy e Dody Dorn em excelente forma ao contrabalançar os planos mais longos e contemplativos das sequências de diálogos e desenvolvimento de personagens e a montagem dinâmica e cheia de inserts e tomadas de ângulos variados das sequências de combate. Da mesma maneira, a fotografia de Roman Vasyanov favorece nossa imersão no universo triste e trágico da narrativa através da paleta dessaturada e cinzenta que, embelezada pela textura incomparável dos filmes rodados em película (sim, isso ainda existe), confere ao projeto uma estética classicista e extremamente elegante.
Mas se há um quesito em que o longa não é apenas um dos melhores, mas o melhor entre todos os projetos produzidos ao longo de 2014 é sua extraordinária mixagem de som: trabalhando com uma infinidade de ruídos extremamente complexos que vão das mais variadas engrenagens internas do tanque capitaneado por Don ao diversos tipos de disparos e explosões causados pelas armas e bombas utilizadas no combate, a equipe liderada por Bruce Tanis, Hamilton Sterling e Jamie Hardt atinge um nível tão fascinante de sutileza e complexidade que podemos notar cada mudança na “atmosfera” diegética, sentindo a diferença não apenas entre dentro e fora do “Tiger I” como entre cada locação e mesmo entre as condições climáticas experimentadas em cada sequência.
Capaz de cortar até o coração mais duro da plateia na cena em que Don e seus comandados compartilham uma garrafa de bebida enquanto “Bible” recita um versículo extremamente apropriado já no terceiro ato da projeção, Corações de Ferro é um filme de guerra simplesmente impecável que, mesmo que não se habilite a ingressar no hall dos grandes clássicos do gênero, não faz feio diante de nenhum deles.