Filme: Chronic (Mostra de São Paulo 2015)

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Chronic é daqueles filmes que, como O Quarto do Filho e Amor, são tão maravilhosos no que se propõem a fazer que ninguém em sã consciência jamais desejará rever. Centrado em um homem profundamente sofrido cuja rotina consiste em acompanhar pacientes de diversas doenças em estado terminal naqueles que costumam ser seus últimos meses, semanas ou dias de vida, o longa proporciona uma experiência ainda mais dolorosa por ser dirigido pelo mexicano Michel Franco, um herdeiro direto do Cinema dos irmãos Dardenne e dos cineastas da nova onda romena – e se você entendeu a referência, sabe que não será poupado da realidade aterrorizante enfrentada pelos personagens.

David (Roth) é um homem calado, introvertido e visivelmente sofrido que, quando não está na casa de um cliente prestando-lhe serviços de enfermagem, está se dedicando ao único hobby que parece ter: correr; seja na rua ou na academia. Marcado por um trauma do passado (inicialmente pensamos que ele cuidou da esposa doente até a morte, mas logo descobrimos que uma de suas manias é assumir a identidade de familiares de seus pacientes), ele ocasionalmente “stalkeia” (na falta de um termo melhor em português), tanto no Facebook na vida real, uma jovem que logo descobrimos ser uma filha com quem ela não tem nenhum contato há um bom tempo.

Voltando a adotar a estética rigorosa de seu longa de estreia, o magnífico Depois de Lucia, Franco nos convida a assistir ao drama dos pacientes de David através de longuíssimos planos em que a câmera praticamente não se move, permitindo que acompanhemos, por exemplo, cada pequeno desafio enfrentado por um senhor que, com os movimentos bastante debilitados, sofre para virar de um lado para o outro da cama ou para fazer uma busca simples em seu tablet; ou ainda, o constrangimento colossal vivido por uma senhora que, incapaz de funcionar normalmente devido a um câncer avançado, defeca nas calças obrigando David a lavá-la – uma cena verdadeiramente torturante em sua revelação da total degradação humana em uma situação como aquela.

Apesar de inserir um pequeno conflito como ponto de virada para o segundo ato (não é spoiler dizer que David é processado pela família de um paciente por supostamente tê-lo molestado – algo que, diga-se de passagem, jamais é sequer sugerido pelo longa), Chronic é um filme de observação paciente do dia-a-dia de seu protagonista, que, após um trauma com o qual ainda não aprendeu a lidar, transformou a morte e o sofrimento em seu purgatório, entregando-se a um trabalho tão difícil de maneira compulsiva e desenvolvendo uma relação patológica com a dor alheia: sem demonstrar qualquer tipo de comoção diante de suas agruras, ele praticamente não sabe mais viver longe delas, chegando a morar na casa dos pacientes e fazer uma infinidade de horas-extra de graça.

Vivido por Tim Roth de forma intensa e sensível, David traz no rosto rugas profundas que mal acreditamos pertencer ao rosto lisinho do assaltante atrapalhado e pé-de-chinelo de Pulp Fiction – e a decisão do ator de manter os ombros levemente retraídos e os olhos sempre inertes e repousados sobre um ponto de fuga imaginário, como se subsistisse apático nos momentos em que não está correndo ou trabalhando (ou seria melhor se purgando?), é digna de um grande ator que, em um mundo justo, seria lembrado em todas as premiações no final do ano.

Decepcionando apenas no último segundo, quando decide tentar surpreender o espectador e fechar um arco dramático que sequer existia através de um clichê dos mais insuportáveis, Chronic é um estudo de personagem fascinante e um retrato tocante da fragilidade da vida humana. Sem dúvida alguma, um dos melhores filmes do ano.

https://youtu.be/FOGiDm8nKzU

Chronic (Idem, México/França, 2015). Escrito e dirigido por Michel Franco. Com Tim Roth, Tate Ellington, Bitsie Tulloch,Maribeth Monroe, Claire van der Boom, David Dastmalchian, Sarah Sutherland, Robin Bartlett e Michael Cristofer.