O Cinema de Buteco adverte: o texto a seguir possui spoilers e deverá ser apreciado com moderação.
ZACK SNYDER FOI O ESCOLHIDO PELA DC/WARNER PARA SER O CABEÇA DAS ADAPTAÇÕES DOS QUADRINHOS PARA OS CINEMAS. O cineasta possui fãs devotos e críticos ferrenhos, mas ninguém pode dizer que ele não possui um estilo e uma assinatura bem autorais, ao contrário da maioria dos diretores contratados pela concorrência em seus filmes. Snyder não decepciona em Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, 2016) e consegue conciliar sua maneira de filmar com as necessidades de um produto que servirá como o primeiro de uma verdadeira leva de outras produções.
A trama se passa 18 meses após os eventos de Homem de Aço (Man of Steel, 2013). A destruição de Metrópolis chamou a atenção de Bruce Wayne (Ben Affleck), que passou a enxerga a presença do Superman como uma verdadeira ameaça capaz de aniquilar a vida na Terra num piscar de olhos. Decidido a combater o filho de Krypton, Batman usa toda a sua inteligência para encontrar a tática correta para vencer.
Acredito que o mais importante a ser dito sobre Batman vs Superman é se os personagens funcionam. Mais importante que saber se o roteiro é bem amarrado ou se o longa-metragem é bom (sim para as duas coisas), é saber se Jesse Eisenberg acertou como Lex Luthor, se Gal Gadot está mesmo uma Mulher-Maravilha, se Jeremy Irons consegue ser um bom Alfred, e, claro, se Ben Affleck não arruinou outro herói. Não faz a menor diferença se Laurence Fishburne transforma Perry White em alívio cômico, se Amy Adams banca a jornalista investigativa que mais se mete em confusões no mundo ou se Henry Cavill tenta fazer seu Clark Kent lutar pelos princípios do bom jornalismo (mas já deu tempo de Spotlight deixar sua marca em Hollywood?): ninguém está mais interessado nesses velhos rostos do que nos novos, o que é uma pena. As premissas que correm em segundo plano são eficientes e capazes de motivar discussões sobre o papel do Homem-Morcego no mundo, mas ficam ofuscadas pelo confronto principal.
O problema da Mulher-Maravilha (Gadot) é a dificuldade em encontrar o seu espaço num filme em que qualquer um é apenas mero coadjuvante. Apesar de ter as suas cenas de destaque, e até com direito a um leve flerte com Bruce Wayne (que diz conhecer “bem” mulheres como ela, numa clara alusão a Mulher-Gato), a personagem certamente não consegue receber tempo o suficiente em cena para mostrar a sua força e independência. Como é um filme cheio de informações para serem guardadas, muitas coisas ficam apressadas. A caracterização da heroína faz parte desse defeito do roteiro. Por outro lado, Jesse Eisenberg felizmente escapa da sombra de A Rede Social e cria um Lex Luthor completamente louco e psicótico. Um vilão poderoso e ameaçador, que não precisa usar os músculos (que não tem) para conseguir os seus objetivos. Jeremy Irons também se destaca no papel de Alfred, que se torna aqui um mestre em tecnologias, além de manter a língua afiada para tentar manter a sanidade de Wayne.
Agora… E o Affleck como Batman?
Meus queridos e queridas, ele está incrível! Talvez seja a melhor encarnação do Homem-Morcego nos cinemas até hoje. Christian Bale pode ser o melhor Batman, mas as coisas que Snyder e Affleck fizeram na obra serão memoráveis. O atual Homem-Morcego é um autêntico veterano de guerra que fica meio pirado. Wayne acorda no meio da noite com pesadelos que o deixam ainda mais cansado de combater inimigos nas ruas e a presença de um herói que ele não consegue entender, deixa suas noites de sono ainda mais agitadas. Não existe mais preocupação em matar ou não os bandidos depois de todos os anos combatendo o crime em Gotham: quem cruza o seu caminho pode realmente não sobreviver para ver outro dia nascendo. Além disso, Affleck é sutil ao apresentar uma aparente condição de severas sequelas psicológicas no personagem, que muitas vezes faz uma cara de quem ficou louco de verdade após tantas batalhas. E sim, até o inimigo verdadeiro entrar em cena, nós somos recompensados com a promessa de ver Batman e Superman lutando entre si depois de serem manipulados por Luthor.
A luta entre os dois é concluída por um detalhe que o roteiro apresenta na introdução (que recria pela milésima vez as mortes de Thomas e Martha Wayne – curiosamente vividos por Jeffrey Dean Morgan e Lauren Cohan, que estarão juntos em The Walking Dead). A coincidência de ambos personagens terem as mães com o mesmo nome se torna uma bela sacada do script de Chris Terrio (vencedor do Oscar por Argo) e David S. Goyer. Mas novamente a pressa é inimiga e as alianças se estabelecem rápido demais para nos convencer. A lembrança da mãe foi o suficiente para perceber o Superman como amigo e não inimigo?
Costumam dizer que para o bom entendedor, meia palavra basta. Depois de assistir apenas ao primeiro trailer e fugir dos outros 300, não consegui escapar de um spoiler dado pelo site Omelete em uma chamada no Twitter. Ao afirmarem que Apocalypse estava na obra, bastou para saber como o filme se encerraria. Não deu outra. O culpado, óbvio, não é o site, mas a turma responsável pela produção dos trailers. Ao invés de guardar segredos para surpreender o público (e respeitar quem lê as HQ’s), optaram pelo caminho mais fácil de mastigar a história e deixar os detalhes para serem montados pelos mais experientes. Mesmo assim, ainda deu para delirar com algumas surpresas deliciosas, como as cenas em que Flash (Ezra Miller), Aquaman (Jason Momoa) e Cyborgue (Ray Fisher) aparecem brevemente.
Inclusive, vale dizer que a preparação da DC para apresentar seus novos personagens sem repetir a estratégia da concorrente foi bem interessante. O roteiro já estabelece a existência desses heróis meta-humanos e transforma o Bruce Wayne numa espécie de “Nick Fury da Warner” para recrutar cada um deles para a formação da equipe no futuro. Resta saber se isso funcionará de verdade em tempos que as necessidades desse público-alvo envolvam o máximo de informação nos trailers.
Já sabemos que todos os filmes produzidos antes de O Homem de Aço foram descartados na atual cronologia. Entre pontos positivos e negativos para essa opção (o mais grave é esse atraso de dez anos em relação ao que a Marvel já faz nos cinemas), chama a atenção a diferença do tom usado na Warner em relação aos heróis da Casa das Ideias. Lá é tudo mais claro, iluminado e otimista, enquanto a DC trabalha com cores mais escuras para criar o seu clima mais sombrio. A Marvel prioriza uma produção em massa extremamente divertida que nos faz rir no meio de toda aquela pancadaria (Os Vingadores é um daqueles filmes feitos para serem assistidos mil vezes ao lado dos amigos – e sempre será agradável), bem ao contrário da DC e sua necessidade em estabelecer o máximo possível de verossimilhança, independente dessa insistência gerar obras mais pesadas e densas. Funciona para a parcela de público a fim de ver bom cinema com temática de heróis, mas pode fracassar em relação aos espectadores condicionados a não pensarem enquanto assistem a esse tipo de filme.
Batman vs Superman: A Origem da Justiça não é o melhor longa-metragem do mundo, mas não faltou com as expectativas criadas pelos fãs. Pecando pela quantidade de informações (e a velocidade como tudo acontece prejudica momentos mais dramáticos ou filosóficos, como a cena em que Wayne caminha até onde os pais estão enterrados), mas compensando por entregar o prometido, Zack Snyder demonstra maturidade e competência nessa difícil missão de estabelecer todo um universo e nos deixa ansiosos pelos próximos filmes – e claro, o retorno do Superman.
PS: Christopher Nolan disse uma vez que “filmes de verdade” não precisavam de cenas pós-créditos. Zack Snyder não ignorou o conselho do mestre e Batman vs Superman não possui nenhuma cena extra.