Crítica publicada originalmente no blog CineViews, de João Marcos Flores.
Em 2010, o documentário Trabalho Interno fez barulho por mastigar para o espectador médio aquilo que já estava claro para qualquer especialista financeiro: o colapso econômico mundial estourado em 2008 foi apenas a consequência natural e derradeira da corrupção sistêmica praticada em um mercado em que apostas de alto risco, empréstimos inconsequentes e até mesmo vendas fantasmas eram feitas rotineiramente e sem nenhuma regulação – e o que é pior: usando o dinheiro de fundos, investimentos e hipotecas da população como moedas de troca em “jogadas” multimilionárias cujo único objetivo era enriquecer seus jogadores (leia-se: os corretores de Wall Street). Em 2015, uma ótima maneira de compreender a crueldade dessa lógica selvagem (protegida pela justificativa da defesa ao livre mercado) é comparar a tragédia vivida pelas centenas de milhares de cidadãos comuns que perderam suas casas em 99 Homes e a frieza dos “lobos” multimilionários que, neste excepcional A Grande Aposta, manipulam a desgraça alheia com a frieza de quem os vê como meros peões de seu tabuleiro particular.
Pois é assustador assistir ao filme e enxergar em nossa realidade cotidiana as consequências catastróficas geradas pela pregação do capitalismo mais predatório que há em jovens das atuais gerações. Há uma cena em que dois corretores que estão prestes a lucrar um dígito abundante em zeros à direita às custas do colapso da economia norte-americana (e mundial) não conseguem controlar a euforia e iniciam uma espécie de “dança da vitória”. Imediatamente, um executivo mais experiente vira para eles e dispara: “
Just don’t fuckin’ dance” – em uma demonstração de hipocrisia que me fez imediatamente pensar nos vários grupos compostos por aspirantes a empreendedores que encontramos na internet, onde a idolatria a ladrões como Jordan Belfort corre solta e cujas listas de “filmes motivacionais para novos empreendedores” incluem não só
O Lobo de Wall Street e
A Rede Social, mas também
O Poderoso Chefão e até
Scarface.
Um fenômeno que mostra que, menos de uma década depois da maior catástrofe econômica mundial desde a quebra de 1929 (e ainda sofrendo suas consequências), já permitimos que a ganância nos fizesse esquecer os erros que cometemos em um passado tão recente.
Escrito pelo diretor Adam McKay e seu colaborador Charles Randolph a partir do livro de Michael Lewis, A Grande Aposta apresenta um núcleo de personagens formado por corretores mais ou menos experientes e bem-sucedidos que, de uma maneira ou de outra, anteciparam a recessão histórica e, ao invés de buscar maneiras de evitá-la (ou ao menos suavizar suas consequências), desenvolveram estratégias comerciais para capitalizar com ela: tido como um sujeito ético para os padrões de Wall Street, Mark Baum (Carell) é um workaholic que ainda tenta superar uma tragédia envolvendo seu irmão; já o esquisitão Michael Burry (Bale), um portador óbvio da Síndrome de Asperger, foi sugado pelo mercado financeiro graças a seu espantoso domínio matemático e apesar de sua gritante inaptidão social. É ele quem primeiro avista a ponta do iceberg, se transformando em piada no meio por procurar os bancos para apostar contra o fundo imobiliário (a “pedra angular” da economia norte-americana) e atraindo o interesse não só de Baum, mas também do banqueiro metrossexual Jared Vennett (Gosling) e da dupla de principiantes Jamie Shipley (Wittrock) e Charlie Geller (Magaro), que, sem dinheiro para apostar na tragédia iminente, vão pedir ajuda para Ben Rickert (Pitt), um executivo aposentado que não quer mais nenhum contato com Wall Street.
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Didático em sua verborragia e inúmeras explicações, o roteiro consegue fazer com que o significado de termos como “ empréstimos
subprime”, “
credit default swaps”, “
tranches” e “CDOs”, essenciais para a compreensão das violações exercidas pelos corretores da hipoteca, fique claro até mesmo para os maiores leigos no assunto – uma tarefa complicada para um documentário e ainda mais desafiadora para um longa de ficção que queira entreter e funcionar como comédia de erros (o que é o caso deste aqui). Narrado por
off por Gosling e Balene sempre trazendo o primeiro (e ocasionalmente outros personagens) olhando para a câmera e se dirigindo diretamente para o espectador (uma estratégia utilizada também em filmes como o já citado
O Lobo de Wall Street e o recente
A Travessia), o longa jamais deixa de ser informativo e interessante, apesar de criar, na tentativa de encontrar formas originais e divertidas de “ensinar” sobre o tema que está discorrendo,
gags que podem até ilustrar bem os conceitos complexos que apresentam e arrancar o riso do espectador no momento em que são exibidas, mas que desabam no segundo seguinte quando percebemos que fomos arrancados para fora do filme ao ver a manipulação cinematográfica escancarada diante dos nossos olhos (estou falando, claro, de digressões
vontrierianas como aquelas que trazem Margot Robbie e Selena Gomez interpretando a si mesmas).
O maior problema do filme é justamente esse: saltando de um personagem a outro, mergulhando em flashbacks e “abrindo parênteses” para pequenas aulas ex machina de acordo com a necessidade imediata do roteiro, a ordem dos eventos vistos na tela jamais soam como a consequência natural uma da outra – um problema evidenciado ainda mais pelas constantes quebras da quarta parede.
A Grande Aposta é, afinal de contas, um filme que sabe que é um filme e que faz questão que saibamos que ele sabe que é um filme. Montado por Hank Corwin no modo inverso ao que ele está acostumado a fazer como membro da equipe de montagem de
Terrence Malick, o filme é cheio de sequências picotadas em que a quantidade de frames por minuto seria capaz de fazer inveja a Dziga Vertov (se ele estivesse vivo) e Michael Bay (e jamais pensei em usar esses dois nomes na mesma frase) – o que não seria necessariamente um problema (pelo contrário, já que a abordagem imprime ao projeto um ritmo alucinado que combina com o estilo de vida de seus personagens) caso sua vontade de chamar a atenção para o próprio trabalho não o levasse a criar “sequências-mosaico” em que cenas do filme se misturam a imagens rápidas da Guerra ao Iraque, de um iPhone, de clipes da MTV e de qualquer outro ícone pop aleatório que remeta ao início da década de 2000, irritando (repito) pela artificialidade com que “tira” o espectador da narrativa apenas para soar
cool e atrair especulação para premiações.
Fotografado por Barry Ackroyd com lentes levemente supersaturadas que intensificam a sensação de insanidade que domina aquele universo (uma lógica inteligentemente quebrada nos flashbacks pintados de sépia que remetem a uma época em que banqueiros ainda não enriqueciam), o longa parece ligado nos 220 – e o diretor Adam McKay merece créditos por imprimir um ritmo histérico em um projeto fadado a soar burocrático e aborrecido. Ainda assim, é inegável que a narrativa acaba se aproximando perigosamente do outro extremo, e que a decisão do cineasta (ao lado de Ackroyd) de manter a câmera colada nos rostos dos atores, tremendo-a o tempo todo e mexendo excessivamente em seu foco como se tentasse focalizar improvisadamente os personagens enquanto eles falam, está longe de ser a mais inteligente. Por fim, há uma coisa que não podemos dizer: que McKay (em seu projeto mais “sério” após se estabelecer nas comédias estreladas por Will Farrell) não sabia o que estava falando; pois, problemas a parte, o ritmo e a estética do longa soam estudados e planejados para ser exatamente do jeito que são.
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A insistência nos primeiríssimos planos, por exemplo, tem o óbvio intuito de valorizar a atuação de seu formidável elenco, que cria figuras ora trágicas ora repulsivas, mas sempre intrigantes: abusando de sua dicção acelerada e de sua persona de judeuzinho irritado, Steve Carell vive Baum como um sujeito movido pelo trabalho cujo filtro moral é gradativamente corrompido ao longo dos anos, atravessando um arco dramático triste e desesperançado que culmina em uma escolha de Sofia e em um consequente abraço no diabo – e, ao longo da projeção, suas reações embasbacadas diante da monstruosidade dos atos praticados por seus colegas de profissão funciona como link moral com o espectador; enquanto isso, Bale volta a provar por que é de longe não só um dos mais intensos, mas também um dos melhores atores de sua geração ao transmitir com perfeição a enorme dificuldade de Burry de se concentrar em seus interlocutores ou mesmo considerá-los dignos de sua atenção, mantendo o olhar sempre distante, distraído e “semi-congelado” (uma observação que fiz bem antes de entender o motivo) sem jamais soar antipático ou arrogante, mas apenas determinado e convicto de seu próprio talento. Fechando o elenco principal, Brad Pitt e a dupla John Magaro/Finn Wittrock criam uma dinâmica curiosa (e de certa forma metalinguística) ao contrapor a experiência e o know-how do primeiro ao entusiasmo e à inexperiência dos segundos. Infelizmente, Ryan Gosling acaba sendo prejudicado por uma maquiagem inexplicável sob qualquer ponto de vista, que enfraquece um pouco seu retrato competente do que há de mais reprovável nos homens de seu tipo – e em um universo dominado por homens, Melissa Leo oferece uma atuação marcante em uma única (e reveladora) cena, enquanto Marisa Thomei pouco pode fazer com uma personagem ingrata que permanece o filme inteiro à sombra do personagem de Carell.
Falhando por subdesenvolver alguns de seus temas e subtramas (o maior exemplo é a situação do irmão de Baum, que jamais cumpre qualquer função narrativa além de conferir um ar de mistério em relação ao passado do sujeito),A Grande Aposta conta também com cenas admiráveis em impacto e concisão, como a hilária primeira aparição do protagonista, chegando atrasado e mesmo assim monopolizando certa reunião, e seu debate com um suposto especialista que, disposto a descreditar a crise inevitável, é confrontado com o fato de que, apenas durante os minutos em que o evento ocorria, as ações de sua empresa despencaram quase 40%. Mas nenhuma se compara àquela em que dois jovens corretores expõem abertamente seus crimes fiscais, levando certo personagem a perguntar ao outro: “Por que raios eles estão confessando?” A resposta, para espanto do primeiro, é: “Eles não estão confessando – eles estão se vangloriando”.
Sim, vivemos em um mundo onde conquistas financeiras são louvadas mesmo quando resultam de fraude e prejuízo ao próximo, onde termos como “meritocracia” (que também pode ser traduzido como “sistema de castas”) são gritados a quatro ventos em um desespero coletivo de travar qualquer processo de inclusão social e onde bancos e instituições financeiras bilionárias batem recordes de lucro mesmo (ou seria principalmente?) em tempos em que o povo perde casa, comida e emprego – e o maior mérito de A Grande Aposta é retratar os responsáveis pelos principais problemas do mundo moderno não como empreendedores superstar, mas como os escrotos que realmente são.
O filme de McKay pode ser imperfeito (como apontei ao longo da crítica), mas é certeiro em nos lembrar de quem nós insistimos em ser como sociedade.