O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica de Blade Runner 2049 possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
A PIADA PARECE TÃO IRRESISTÍVEL QUANTO UMA BOA SKOL GELADA. “Nossa! Mas eu preciso ver os 2048 filmes anteriores?” A piada foi ruim, mas a pegadinha foi maior ainda: existe Skol boa? Os cinéfilos até podem debochar dizendo que “2049” se refere exatamente ao número absurdo de versões existentes do filme original, lançado lá em 1982, mas a real é que Blade Runner 2049 (2017) já está entre nós e é um puta filmaço!
Comandado por Denis Villeneuve (A Chegada), o novo Blade Runner é um show visual capaz de encher os nossos olhos de lágrimas. Desde Mad Max: Estrada da Fúria não via um trabalho tão lindo na fotografia e acredito que talvez seja inevitável ver o diretor de fotografia Roger Deakins recebendo o seu primeiro Oscar em 2018. São cenas maravilhosas que conduzem o espectador para um mundo gigantesco que é explorado sem pressa ao longo das 2h32 de exibição. Enquanto Villeneuve não tem pressa de criar sequências de ação, Deakins deita e rola.
Para casar com o visual perfeito desse futuro distópico e a direção segura, Blade Runner 2049 conta com uma trilha sonora inspirada de Hans Zimmer e Benjamin Wallfish. A dupla está longe (bem longe mesmo) de superar o trabalho de Vangelis, mas parece não ser esse o objetivo em momento algum. Tanto que a trilha original serve de base para a maioria dos novos temas, que conseguem atingir o nível de perfeição necessário para combinar com a fotografia de Deakins. Esse quarteto, Villeneuve, Deakins, Wallfisch e Zimmer, acertou em cheio na missão de tornar Blade Runner 2049 arrepiante.
Ao contrário do que foi visto em Férias Frustradas, O Exterminador do Futuro: Genesis, Star Wars: Episódio VII – O Despertar da Força (principalmente) ou Jurassic World: O Mundo dos Dinossauros, essa “continuação” de um velho clássico consegue ser maior que apenas uma releitura disfarçada de algo novo. As referências ao longa de 1982 são sutis, verdadeiras homenagens, e em momento algum servem como muletas. Por exemplo, como ignorar as semelhanças – muito além do visual – de Mariette (Mackenzie Davis) com Pris (Daryl Hannah)? A replicante foi concebida como uma unidade para dar prazer, enquanto Mariette é uma humana profissional do “sequisso”; Wallace (Jared Leto) é a encarnação de Tyrel (Joe Turkel), naquela que talvez seja a releitura mais forçada; mas aí temos Luv (Sylvia Hoeks), que consegue nos remeter visualmente a Rachael (Sean Young) e ser tão implacável quanto Roy (Hutger Hauer).
Villeneuve certamente foi mais feliz que qualquer um dos diretores dos “remakes” citados acima. Isso não apenas atesta a sua qualidade como um dos realizadores mais talentosos surgidos nos últimos anos, quanto sua coragem de criar algo novo sem precisar depender do que já foi feito e ao mesmo tempo sem magoar o sentimento dos fãs do original. Esse talvez seja o principal mérito de Blade Runner 2049: saber ser autêntico preservando suas raízes.
Em Ela, de Spike Jonze, o protagonista eleva a questão do relacionamento a distância para um namoro com um sistema operacional. Joi (Ana de Armas) é uma versão materializada de Sam (Scarlett Johansson) e uma criação digital feita com o intuito de agradar aos desejos afetivos/sexuais de seus clientes. Mas o que vale ser debatido aqui é o quanto os replicantes, como K/Joe (Ryan Gosling) são tratados como verdadeiras escórias da sociedade. X-Men, de Bryan Singer, já havia trabalhado de maneira quase perfeita a questão de preconceito e dificuldade das pessoas aceitarem aqueles que são diferentes. Blade Runner 2049 escancara isso e mostra como o próprio K se enxerga como uma vida que não merece ser feliz ou viver relacionamentos “reais”. Gosling manda bem demais e sua última cena faz lembrar do discurso de Roy na chuva nos momentos finais do original. A diferença é que agora estamos no meio de uma tempestade de neve.
O que posso falar da volta de Deckard (Harrison Ford), um dos personagens mais marcantes da história do cinema? Presente desde o minuto inicial – vivendo nas sombras do nosso inconsciente a cada vez que olhamos Ryan Gosling – o eterno Indiana Jones surge repetindo uma famosa cena em que aponta a arma para Rachael no elevador. Desta vez, claro, o alvo é o coitado do K, que troca alguns socos com o velho herói ao som de “Suspicious Minds” e “Can’t Help Falling in Love”, do rei Elvis Presley. É digno de elogio que Blade Runner 2049 respeite o legado de Harrison Ford sem querer inventar moda transformando Deckard num herói ou exigindo demais da sua participação. É breve, é eficiente, é inesquecível. É o suficiente.
São quase 3 horas que se passam sem cansar o público. Nós simplesmente embarcamos numa jornada misteriosa em busca da verdade e em momento algum queremos imaginar que existe um destino, um lugar para se chegar e concluir a história. A amiga Maristela Bretas alertou sobre a abertura que o roteiro deixa para possíveis continuações (o exército de replicantes; o que será feito do cientista vivido por Jared Leto?), mas não foi exatamente isso que Ridley Scott fez com a gente? Essa é uma franquia sobre a jornada, e não sobre as respostas. Talvez a gente fique mais de 30 anos aguardando pelas respostas para essas questões… Portanto, aproveite a releitura e não caia na tentação de comparar o presente com o passado.