É típico de François Ozon retratar personagens em situação de fuga temporária de si mesmos quando colocados frente a situações que lhes exigem uma postura que só vai aparecer depois de um certo engrandecimento espiritual ou uma experiência de vida que, até o momento, aqueles personagens desconheciam. Experiência que se dá de uma forma muito rápida, quando acontece no contato com um outro, também perdido e em busca de respostas. É no embate entre subjetividades se definindo que se foca o olhar do diretor francês.
Este olhar é quase sempre um olhar invasivo. A câmera de Ozon espreita quando circula, cerca, apreende sensações e sentimentos dos personagens que nem eles conseguiram racionalizar. Se existe um paralelo entre Ozon e Hitchcock é este: os dois diretores situam o espectador um passo à frente dos personagens. Mas enquanto o mestre do suspense o fazia tendo como objetivo narrativo a ação, Ozon quer atingir a psiquê. Mas nos minutos finais de O Refúgio esta distância se quebra: Mousse (Isabelle Carré, perfeita) se volta para a câmera olhando-a fixamente, o que acaba sendo um choque, já que a moça o tempo todo se escondeu não só do olhar do outro, mas também de sua condição: Mousse em breve será mãe.
O pai da criança, Louis (Melvil Poupaud, com quem Ozon já havia trabalhado no belíssimo O Tempo que Resta), morreu após ter sofrido uma overdose de heroína. Mousse que vivia com ele num apartamento da família, vinha se drogando na mesma medida mas sobreviveu. A família do rapaz é contra esta gravidez, mas Mousse, movida por uma estranha curiosidade (como ela mesmo alega) decide seguir com a gestação. Se isola numa casa onde vivera tempos atrás quando mantinha relações com um senhor.
De repente uma visita: Paul (Louis-Ronan Choisy) o cunhado de Mousse aparece com a intenção de passar ali uns dias antes de embarcar para a Espanha. A princípio para Mousse a ideia te der alguém ao seu lado parece estranha e incômoda. É como se a solidão para quem acabou de passar por um trauma fosse um refúgio. Mas o carinho e preocupação de Paul acabam por tocá-la e ensiná-la novos tipos de afeto. Uma ligação de cumplicidade e de compreensão. Mousse pode não ser a mãe perfeita: parece estar de certo modo perdida, sem a consciência do que realmente é ser mãe (observem por exemplo a cena em que numa banheira ela acaricia sua barriga como se estivesse reconhecendo, dolorosamente um corpo estranho), mas Paul traz mais leveza a esta situação e sua presença naquela casa passa a ser um novo refúgio. Não se sabe nada do passado dela, mas sua dependência química denuncia alguma carência (ela sempre recorre aos remédios numa situação de maior fragilidade).
E Paul mesmo sendo homossexual se envolve com esta história que a princípio não era sua. Como se para ele, algum laço com seu irmão se restabelecesse a partir dali. Como se uma busca por conhecê-lo melhor fosse satisfeita no contato com aquela mulher que de uma forma ou de outra carrega a única herança que Louis deixou. Os sentimentos confundem-se.
O Refúgio fala de amor enquanto um sentimento que protege, como um lugar seguro. Quando ele aparece faz com que os envolvidos se vejam tomados por algo quase magnético que os une mesmo que na distância, e que cria um sentimento de confiança mesmo que na despedida. Mousse ama e confia em Paul, e tudo que ele representa. E a maior prova que poderia dar disso acontece justamente quando se aproxima do espectador, em close: parece que ali ela consegue finalmente assumir seus sentimentos.
Le Refuge, 2009
Direção: François Ozon
Roteiro: François Ozon e Mathieu Hippeau
Elenco: Isabelle Carré, Louis-Ronan Choisy, Melvil Poupaud, Pierre Louis-Calixte