TENDO EM MENTE LARS VON TRIER COMO UM REALIZADOR PESSIMISTA, pode-se pensar que Melancolia, seu mais recente filme, é o único que oferece alguma perspectiva de redenção para o espírito humano, mau por definição. Esta tese, que defende em todos os filmes (característica que compartilha com Michael Hanneke), é explorada aqui em um viés menos doloroso do ponto de vista físico: seus personagens não experimentarão ao longo da película nada parecido com a submissão e a degradação impostas por outrem. Não. Em Melancolia a degradação está apenas no nível psicológico (e porque não dizer, espiritual) das protagonistas, que se vêem, cada uma a sua maneira, frente a situações que lhe causam pânico, medo e desespero. Uma vai se casar. Outra não sabe como lidar com o fim do mundo iminente.
Depois de um belíssimo prólogo, de um virtuosismo maior que aquele visto em Anticristo, o espectador já está pronto para o que virá a seguir: uma sensação de letargia, de incapacidade frente às situações vividas. É como se a câmera excessivamente lenta (que logo será substituída pela câmera na mão, marca do diretor) fosse metáfora para o estado das coisas na vida dessas duas mulheres (como no plano em que uma noiva flutua sobre a correnteza – referências à Ophelia de Millais?). E não deixa de ser interessante pensar a trajetória de Von Trier, que se no começo de sua trajetória se negava a utilizar quaisquer recursos mais sofisticados em seu cinema (graças ao Dogma 95), aqui entrega seu segundo filme cuja marca é a grandiosidade das cenas, o cuidado estético excessivo, mas sempre bem vindo. Em ambas as fases Von Trier foi capaz de adequar as possibilidades cinematográficas às suas necessidades narrativas com êxito. Mas é inegável que os enquadramentos e composições vistas aqui são inéditos. Von Trier é um esteta.
Justine (Kirsten Dunst) está voltando de seu casamento, e ao chegar à sua festa acompanhada do marido Michael (Alexander Skarsgard) é recebida pelos seus convidados com aquilo que ela naturalmente tem que retribuir: sorrisos, abraços, felicitações, discursos… Os rituais inerentes ao casamento estão ali. Rituais que sua mãe (a sempre fantástica Charlotte Rampling) parece recriminar, mas que foram pensados em todos os detalhes por Claire (Charlotte Gainsbourg) sua irmã mais velha. Justine é uma protagonista diferente das outras concebidas pelo diretor: bem sucedida, sem motivos aparentes para que se sinta deprimida. Alguns indícios nos são dados quanto à possibilidade de um possível comportamento estranho. Apesar de seus esforços, e dos esforços de seu então marido que insiste em lhe agradar e se aproximar, Justine simplesmente não está feliz. É uma personagem praticamente fadada à esta posição estática diante da vida: não consegue esboçar emoções genuínas, até o ponto em que chega a ter dificuldades para se locomover. Nem o prato preferido preparado pela irmã lhe satisfaz ou tem o mesmo sabor: Justine é depressiva e não há muito o que fazer.
Paralelamente a isso um planeta (chamado Melancolia) aproxima-se da Terra e a possibilidade de que haja um choque assusta Claire, até então segura e preocupada em cuidar da irmã deprimida. Apesar dos avisos de seu marido (Kiefer Sutherland) de que isso é impossível, algo a desloca do lugar seguro no qual vivia: se existe uma possibilidade única de que o mundo acabe, o que ela poderá fazer? Estranhamente (ou não) Justine acaba se resignando e vendo a possibilidade deste choque entre a Terra e Melancolia com um inabalável estoicismo: não há o que fazer, só esperar pelo fim. E se “O Planeta Terra é mau” como ela diz em determinado momento, talvez este fim se mostre um caminho natural: “A vida só existe na Terra. E não por muito tempo”…
A dinânica que se estabelece então é desesperadora (para os personagens e para quem assiste), pois antes de qualquer coisa existe aí uma força destruidora que não se pode controlar (o que remete a uma relação interessante com Anticristo). É emocionante e patético ao mesmo tempo perceber como nos apegamos à vida quando ela está em risco e como o ser humano não está acostumado com a impotência, mesmo quando esta se impõe. Clair quer fugir, mas para onde? Longe das acusações de seus detratores, que dizem ser Lars Von Trier um diretor que coloca a mulher em situações degradantes, em Melancolia o espírito feminino é visto com uma inédita nobreza e força.
Ao final, somos abandonados pela música de Richard Wagner, que nos acompanhara desde os primeiros segundos do filme. Vem o silencio e a constatação, que somos forçados a esquecer (a necessidade de ser felizes exige isso de nós) mas que aparece com uma beleza que ao que tudo indica, só Lars Von Trier é capaz de criar: a vida é frágil e esta é a maior verdade do mundo.
Melancholia, 2011
Direção: Lars Von Trier
Roteiro: Lars Von Trier
Elenco: Kirsten Dunst, Charlotte Gainsbourg, Kiefer Sutherland, Charlotte Rampling, Alexander Skarsgard, John Hurt, Stellan Skarsgard