O CINEMA DE BUTECO ADVERTE: A review de Ângela possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
UM CRIME BÁRBARO CHOCOU O BRASIL NO FINAL DOS ANOS 1970. A socialite Ângela Diniz foi assassinada pelo seu companheiro na véspera do ano novo de 1976. Após o crime, a defesa do assassino conseguiu sua liberdade argumentando que o crime fora cometido em “defesa da honra”. Apenas em 2023, a justiça brasileira extinguiu essa tese e ela foi abandonada nos tribunais do país.
Em Ângela, filme do cineasta Hugo Prata (Elis), nós acompanhamos um recorte breve desta história. Embora tome liberdades criativas, a trama mostra o começo do relacionamento de Ângela (Isis Valverde) com Raul Street (Gabriel Braga Nunes) até o fatídico dia do crime. Ou seja, não se trata de uma cinebiografia tradicional, onde vamos saber mais detalhes sobre a vida dos protagonistas.
A proposta acertada de Ângela não é repetir o que já havia sido feito e mostrado em outras mídias, mas apresentar um recorte afiado sobre como relacionamentos tóxicos são construídos e fazem suas vítimas. Desde o começo, a câmera não desgruda do casal e acompanhamos toda a evolução desse encontro.
Aliás, o desenvolvimento dos personagens é outro grande destaque. Ângela surge como uma mulher atormentada pela (in)justiça, cansada da humanidade, plenamente consciente do que causa nos homens ao seu redor e, ainda assim, interessada em viver fazendo o que gera mais prazer e alegria. É como se fosse a encarnação do pensamento: “odeio homens, mas eles me fazem feliz”.
Já Raul, desde os minutos iniciais, é como um caçador espreitando a sua próxima vítima. Seus olhares perseguindo Ângela até forçar um encontro revelam características perigosas. Minutos depois da primeira conversa, vem a revelação dele ser um homem casado. Deveria ter sido o suficiente para Ângela cair fora desde o começo, mas não é a razão que fala mais alto quando existe um sentimento mútuo de atração.
Quando reencontramos a dupla, um já está enroscado no braço do outro. Aceitando e rindo dos perigos que correm ao transarem na mesma casa em que estão seus respectivos parceiros. Aliás, o sexo é um elemento muito presente na narrativa. Em momento algum existem cenas gráficas ou desnecessárias, já que é essa intensidade que definia a relação de Ângela com Raul.
Me chama a atenção a cena de uma boate, quando Raul fica incapaz de controlar o ciúme de ver Ângela dançando com um sósia (ou uma caracterização do próprio?) do Chico Buarque. Ele corre atrás dela para tirar satisfação, em mais um sinal de alerta. Logo depois entramos na parte em que o casal assumiu seu relacionamento e se muda para a Praia dos Ossos, em Búzios. É a partir daí que as agressões se tornam mais frequentes.
São cenas de embrulhar o estômago e que contrastam com todo o romance visto em cenas tórridas de amor. O agressor tem o padrão de chorar e pedir desculpas após seus atos. Prata retrata isso com uma crueza dolorosa, especialmente para quem consegue identificar isso na vida real, em relações de pessoas próximas. Lembro de mais de duas sequências de agressões, sendo que a segunda me fez torcer o rosto em uma careta e desviar os olhos da tela.
Algumas análises na internet levantaram a interpretação de que o filme valida a tese usada pela defesa do assassino, como se Ângela fosse uma mulher perdida e consumida pelos seus próprios excessos e desejos. Penso o contrário. Condenar uma obra por retratar uma mulher vivendo a vida como queria é errado. Não há absolutamente nada de errado em ser feliz, seja fazendo o que você quiser. Na verdade, infelizmente, enxergo até uma certa proximidade (inconsciente) dessa opinião negativa com os advogados de defesa…
Entendo que o tema é sério e não deve ser abordado de qualquer forma, mas a arte não tem nenhuma obrigação de ser leve ou agradável. Ângela é um filme pesado por ir de um extremo ao outro, e essa coragem torna a obra muito importante. O tipo de longa que eu nunca mais vou querer assistir novamente na minha vida, mas marcante o suficiente para não ser esquecido.
Após assistir ao filme, recomendo fortemente ouvir o podcast Praia dos Ossos. Inclusive, muito mais indicado para quem pretende conhecer mais sobre o crime. Também indico Dormindo com o Inimigo, com Julia Roberts.
Gostou? Veja a crítica em vídeo de Ângela no canal do Cinema de Buteco: