Imaginem o furor em torno deste filme na ocasião de seu lançamento: o casal do momento (Cruise e Kidman) estrelando uma produção do mestre Kubrick depois de doze anos sem nada realizar. Um filme que prometia ser forte e misterioso: De Olhos Bem Fechados, é mais uma adaptação extremamente bem sucedida do diretor (assim como Laranja Mecânica, Barry Lindon, O Iluminado, Lolita…). No caso desde filme, era uma obra que ele almejava adaptar a muito tempo: História de um Sonho, de Arthur Schnitzler. Publicado originalmente em 1926 a história se passa numa Viena meio decadente, meio opulenta do fim do século XX. Aqui estamos em Nova Iorque, onde a opulência e a decadência já não se restringem a uma determinada classe social ou a um grupo de pessoas: esta passa a ser a condição de todo homem, que na segurança de seu lar e da sua vida aparentemente constituída não consegue lidar com a possibilidade da perda, da desestruturação, sem o quê só lhe resta a loucura.
A primeira vez que se assiste a um filme de Kubrick nunca se compara às outras. Fica-se ao mesmo tempo impressionado e emocionado com a perfeição do que se vê em cena. Ver Kubrick, que na maioria das vezes volta seu foco para histórias mais… megalomaníacas por assim dizer, falar de um casal tipicamente americano cuja vida simples parece esconder possibilidades cada vez mais bizarras, é uma experiência quase orgásmica. E isso não se deve às cenas fortes (que no fim das contas nada mostram de fato). Mas sim ao balé coordenado por Kubrick que se preocupa em conceber cenas perfeitas (lendas em torno da produção deste filme não faltam), ao mesmo tempo em que se pensa que este é seu último filme (ele morrera quatro dias depois de exibi-lo para o estúdio, ainda não totalmente finalizado). É quase um registro histórico o que vemos.
Na cena inicial Alice (Nicole Kidman longe das plásticas excessivas que a tornaram tão menos bela atualmente) se troca em frente ao seu marido William (Tom Cruise) ao som de uma bela ópera. Os dois vão a uma festa. Na alcova de seu lar tudo parece estar perfeito. E de fato está. Mas o contato com o “mundo externo” parece desencadear uma série de acontecimentos (que só são acontecimentos dentro da mente perturbada de William, já que nada acontece de fato) que envolvem ciúme, desconfiança, ilusão e um clima de sonho constante: o casal joga um jogo onde verdades aparecem enquanto fumam maconha, um elemento obviamente incluído por Kubrick, já que no livro original o sonho e seus efeitos não está nada relacionado ao efeito de alguma droga e sim a um universo quase psicanalítico – Schnitzler era amigo de Freud e acompanhou de perto suas pesquisas a respeito.
Mas o dado da latência e da pulsão sexual está sempre presente: as vontades não propriamente consumadas são o estopim que motiva todo o tipo de reação de William (Fridolin no livro original), que por imaginar cenas de Alice (no livro de Schnitzler, Albertine) com um homem que ela confessa ter desejado tempos atrás, busca na noite nova-iorquina uma mistura de vingança e fuga e acaba envolvido com uma organização que promete puni-lo caso compartilhe o que sabe: um ritual órgico que acontece num lugar escondido, e só é permitido a iniciados. Não por acaso a porta de entrada para este ritual é a senha fidelio, que remete à fidelidade em latim.
No fim das contas a resposta e a paz encontradas por William em seu lar, quando observa Alice fazendo o dever de casa com sua filha, mostram-se a melhor alternativa. Tudo aquilo que havia passado numa longa noite – envolvimento com prostitutas, morte, pedofilia (a famosa aparição de Leelee Sobieski é algo de sensacional ), parece não ter passado de um sonho. Como pode tudo aquilo ter acontecido a um casal que no fim das contas se encontra numa loja de brinquedos comprando Barbies para sua filha?
O que é melhor: livro ou adaptação? Para mim ambos são obras extremamente diferentes, embora partam de uma mesma história. Mas assisti-la me parece mais interessante…