Crítica: John Wick: Um Novo Dia Para Matar (2017)

HÁ QUASE TRÊS ANOS, este que vos escreve abria esta mesma página, nesta mesma área de expediente do Cinema de Buteco, para escrever sobre De Volta ao Jogo. Mal sabia eu que, hoje, aquele tão despretensioso quanto divertido e eficiente filme de ação teria se tornado um longa cultuado nos confins da cinefilia, revigorado parcialmente a carreira de Keanu Reeves e, pasmem, ganharia uma sequência de sucesso. John Wick: Um Novo Dia Para Matar, em seu título genérico que mais uma vez revela pouco além de “mais uma” trama violenta, consagra a qualidade da franquia na esfera de seu gênero.

Chad Stahelski e Derek Kolstad, respectivamente diretor e roteirista, têm concentrado todos os seus trabalhos para continuar a jornada de um personagem que, rapidamente, transformou-se num ícone do cinema de ação contemporâneo – superando, provavelmente, as expectativas dos criadores. A transitoriedade da constituição dos heróis, dentro da produção cinematográfica estadunidense de ação, é refletida na retomada histórica começada na década de 1980, quando figuras tais quais Arnold Schwarzenegger, em “Comando Para Matar” e “Predador”, Sylvester Stallone, em “Rambo” e “Cobra”, e Bruce Willis, em “Duro de Matar”, personalizavam o heroísmo individual, humanamente capacitado e absolutamente determinado – o “exército de um homem só” -; em seguida, o tempo cedeu espaço aos buddy cop movies, na década posterior, nos quais a força era dividida e a descontração ganhava espaço; e, enfim, para os filmes de super-heróis, dominantes até a atualidade, que substituem a condição humana da força pela sobrenatural. John Wick (Keanu Reeves), todavia, representa uma contramão – ou resposta – ao superávit recente de narrativas super-heroicas, apresentando-se como um protagonista que retoma fielmente as marcas emblemáticas da ação dos gloriosos anos oitenta. Aparentemente, sua chegada se deu no contexto mais adequado.

Não havendo mais a necessidade de apresentar o caráter e a capacidade de imposição do personagem-título e a solidez de retomada nostálgica de sua forma – a fita original o fez suficientemente -, John Wick: Um Novo Dia Para Matar, a melhor rota de escape dos filmes do Oscar em cartaz no circuito nacional, experimenta transitar por outros movimentos e possibilidades narrativas sem abandonar os traços fortes de sua premissa. A destruição da última “memória viva” de sua falecida esposa tirou o ex-assassino da aposentadoria uma vez, e a dilaceração das últimas recordações físicas da vida afetiva que um dia possuiu o entregam novamente à violência – embora com arcos e desvios, Wick se insere numa jornada vingativa.

Por detrás da emulação mais evidente – a supracitada relativa à era oitentista da ação -, exposta mesmo em diálogos ou comportamentos de seu protagonista, o longa-metragem de Chad Stahelski propõe, no código moral estabelecido na trama, um inteligente desenho de reconstrução do western, pela exposição de um universo no qual todas as personagens factualmente envolvidas estão permanentemente sujeitas à execução e sofrimento da violência – e, afinal, à morte – enquanto meras práticas profissionais e maneiras aceitáveis de alcance de objetivos, de tal modo que não haja a sensibilização ou princípio punitivo por parte daqueles que são parte do arco narrativo; este arcabouço ético, no entanto, é solidamente estabelecido, conforme evidente na percepção de que os homicidas cotidianos jamais ferem cidadãos en passant, mesmo quando agem nos cenários urbanos. A indiferença destes inocentes à violência que os cerca é equiparada àquela dos “velhoestinos” que, ao avistarem mais um forasteiro sendo assassinado no saloon, silenciosamente seguem suas vidas – eles não interferem na “ética entre criminosos”, desde que eles não interfiram em suas vidas, e esta é a condição de convivência num contexto marcado pela ilegalidade. Utilizando-se, também, de construções visuais sutis e sofisticadas – a exemplo daquela na qual o protagonista e Cassian (Common) se encaram pacífica e cordialmente antes de ingressarem num embate, ou mesmo a simbólica participação de Franco Nero – para sugerir tal composição referencial, John Wick: Um Novo Dia Para Morrer propõe que um paralelo entre a poderosa expansão do crime organizado na atualidade e a evidenciada marca daquela época seja colocado em diálogo.

A obra ainda é suficientemente sagaz para subverter, simultaneamente, as tradições formais tanto oitentistas quanto western, ao abdicar de uma potencialmente marcante trilha sonora de tensão crescente, optando por indicar o perigo apenas por meio dos ruídos do ambiente – o que o torna irrefutavelmente contemporâneo em sua urbanidade -, ou mesmo na estilização visual, seja por meio da fotografia neon nas tomadas escuras ou pelos vistosos ternos que substituem no protagonista uma possível regata ensanguentada e suja, atribuindo-o um tom eloquente de elegância em meio à brutalidade que o cerca e que é, enfim, intrínseca à sua existência.

Pois John Wick é, na mais sintética metáfora futebolística, o “volante que joga de terno”: a precisão e a classe, quase artísticas, complementam com perfeição a intensidade e a funcionalidade de um notável destruidor de jogadas – ou daqueles que se colocarem como obstáculos em seu caminho.

Nota: [trêsemeia]