O CiNEMA DE BUTECO ADVERTE: A crítica de Secretária possui spoilers e deverá ser apreciada com moderação.
QUEM FOI QUE DISSE QUE O AMOR PRECISA SER DOCE E SENSÍVEL? Essa pergunta é a forma resumida de descrever Secretária (Secretary, 2002), cuja trama gira em torno de duas pessoas igualmente “esquisitas” aos olhos da sociedade e desenvolvem uma relação BDSM.
Antes de aprofundar a discussão é importante esclarecer a interpretação que me levou a escrever a crítica de Secretária. É possível sim problematizar o roteiro como um filme de relação abusiva e tóxica. Afinal, existem várias passagens em que existe assédio moral e sexual da parte do empregador da protagonista. Sem falar que ela é alguém que está passando por um momento pessoal complicado. Mas não seguirei por esse caminho, definitivamente.
Também acredito que a protagonista encontrou a sua paz de espírito vivendo exatamente o que ela precisava viver para ser feliz. Se os excessos são consensuais e causam prazer na vida da personagem, o que há de errado realmente com isso? Na trilha sonora temos “I’m Your Man”, do Leonard Coeh, que explicita o sentimento de entrega incondicional da protagonista. Ela está preparada para ser e fazer o que for necessário. E está OK com isso.
Para quem não assistiu ao filme e continua lendo a crítica de Secretária sem saber do que se trata, a trama conta a história de Lee (Maggie Gyllenhaal), uma jovem que acabou de sair de um período de internação num hospital psiquiátrico e está buscando um emprego. Ela acaba sendo contratada pelo sr. Grey (James Spader), um advogado exigente e com hábitos um tanto peculiares.
A primeira cena mostra Lee usando um separador de mãos (ou pernas, depende de como você usar) e pegando um papel com a boca enquanto anda com um semblante tranquilo. Na sequência voltamos seis meses no tempo para mostrar quem é essa garota e como ela foi parar naquela situação. Descobrimos que Lee tem o hábito de se cortar sempre que passa por alguma experiência ruim. Sua vida começa a mudar depois de começar a trabalhar com o sr. Grey (note que ela SEMPRE chama ele de “senhor” e apenas depois do final de uma sessão de masturbação, que diz o primeiro nome “Edward”.)
A relação entre os dois é de clara submissão. Sr. Grey gosta de dar ordens e fazer as coisas do seu jeito, enquanto Lee sente imensa satisfação em agradar. Não mede esforços para realizar os pedidos do chefe. Existe até uma cena no final, quando surge uma personagem com um monte de livros sobre feminismo e diz que Lee precisa ler sobre esse assunto, mas a real da obra é trabalhar com fetiches e isso não significa descuidar de si mesmo (a).
A grande questão é que tanto Lee quanto sr. Grey não entendem exatamente o que está acontecendo nessa relação. Em uma cena, ele até escreve uma carta pedindo desculpas por ser “assim” e fazer certas coisas. É como se relutasse em aceitar sua natureza e isso faz com que ele sinta dor ao invés de desfrutar algo que surge em sua frente. Para não ceder aos impulsos, sr. Grey aparece diversas vezes dividindo seu tempo entre maratonas de exercícios físicos (queimar as energias) e cuidando das suas orquídeas (para concentrar em alguma coisa).
Não é coincidência que E.L. James tenha batizado seu protagonista de Christian Grey em 50 Tons de Cinza. Ambas obras possuem “semelhanças”, mas o grande diferencial é que James Spader interpreta um personagem esquisito, enquanto Jamie Dornan é o cara mais “gostosão” e fácil de atrair a atenção feminina. De resto, impossível não conectar as duas histórias.
A sensualidade de Secretária pode não funcionar para todas as pessoas. Acredito que a grande maioria do público não conseguirá se excitar com a história, mas é compreensível. Como disse, o tesão do filme está em apresentar personagens cheios de falhas e que parecem “esquisitos” para as outras pessoas. Ainda assim é possível pegar detalhes provocantes presentes no roteiro, como a ambiguidade da profissão de Lee com os tapas que ela recebe a cada erro. Em uma cena, quando está frustrada por não ser castigada, Lee diz: “If you need more tapping, i can come back later”. Na tradução não dá para entender, mas “tapping” é de bater nas teclas da máquina de escrever e também de bater… na bunda.
O prazer pela dor é outro grande afrodisíaco que a obra apresenta em duas cenas bem interessantes. O diretor prepara bem o público para esse momento ao fazer com que os dois personagens conversem sobre o hábito de Lee se cortar. Sr. Grey ordena que ela NUNCA mais faça aquilo porque não vai mais precisar sentir esse tipo de dor para se sentir viva. Em outra cena, Lee comete erros de datilografia e recebe uma punição: ela precisa se inclinar na mesa e ler o documento em voz alta enquanto leva uns tapas na bunda.
Outra cena provocante envolve a mesma situação, mas com algumas diferenças: Lee precisa levantar sua saia, abaixar a calcinha e ficar inclinada. Ao perceber a surpresa da sua secretária, sr. Grey deixa claro (duas vezes) que não pretender foder com ela. Ao invés disso, começa a se masturbar. A câmera mostra a expressão de dúvida (e expectativa) no rosto de Lee, que acaba precisando ir para o banheiro se aliviar depois de ser dispensada pelo patrão.
Pode parecer realmente esquisito, eu sei, mas fetiches sexuais não costumam fazer sentido para quem está fora da situação. Para esses dois personagens, essa relação é exatamente o que precisam e procuram. É o que os faz sentir prazer e paz, sem precisar se preocupar em atender as expectativas de uma vida normal com pessoas que não conseguiriam entender isso.
São esses detalhes que tornam o filme tão interessante e provocante. Ao nos deparar com o que não entendemos completamente, é mais fácil se fechar e criar obstáculos para abrir a mente. Recomendo fortemente para todos os fãs de histórias românticas com personagens imperfeitos.
Secretária foi eleito pelo Cinema de Buteco como um dos melhores filmes de romance dos anos 2000 e uma obra essencial para quem quer ver como o cinema retrata a prática BDSM.
Acompanhe a crítica de Secretária na edição 194 do projeto 365 filmes em um ano pelo YouTube: