38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo #21
Rodado praticamente todo dentro de uma clínica psiquiátrica e girando em torno de personagens perdidos em meio ao vício de remédios e outras substâncias químicas, distúrbios mentais diversos e transtornos comportamentais e sociais, Boa Sorte está longe de ser um típico “filme de sanatório” na linha de Um Estranho no Ninho, Bicho de Sete Cabeças ou Garota Interrompida; ao contrário disso, o foco da diretora Carolina Jabor está na relação entre seu casal principal, que, alforriados das obrigações sociais que são moeda corrente no mundo “aqui de fora”, estão abertos para mergulhar em uma relação franca e livre de convenções e expectativas – ainda que, em seu caso, o “até que a morte os separe” tenha tudo para chegar cedo demais.
João (Zappa) é um adolescente viciado em uma combinação de antidepressivos e Fanta laranja que é enviado pelos pais (Camargo e Fróes) à rehab administrada pela rígida Dra. Lorena (Kiss), onde conhece a problemática Judite (Secco), com quem logo inicia uma amizade que não tarda em se se transformar em uma paixonite – o problema é que Judite é HIV positivo e hepática do tipo C além de ter uma série de outros problemas de saúde causados por seus excessos, o que impede que o relacionamento dos dois os permita nutrir qualquer tipo de expectativa futura.
Vivendo um menino (porque não dá para chamá-lo de outra coisa) imaturo e calado que não me espantaria se fosse diagnosticado com algum grau de Síndrome de Down ou de Estocolmo, o estreante João Pedro Zapa protagoniza o projeto com segurança e sensibilidade, transformando seu personagem no contraponto perfeito para a mulher surrada e desiludida, apesar de jovem, vivida por Deborah Secco – que, extremamente magra e dona de olhos fundos e tristes, encarna Judite com entrega e coragem, despindo-se de sua persona cinematográfica – e novelesca – e convencendo como uma personagem marginal e excluída que aprendeu a apreciar a simplicidade das únicas opções que lhe restaram na vida.
Demostrando uma consciência muito grande de seu trabalho como diretora desde os primeiros minutos de projeção, quando imprime ritmo e timing cômico à entrevista ágil e quase surreal feita pela Dra. Lorena com João e deixa claro o distanciamento inicial entre o protagonista e Judite ao enquadrá-los em cantos opostos de um plano conjunto que traz um grande muro em seu centro, Jabor peca apenas por pontualmente exagerar na utilização de elementos narrativos que se tornam óbvios pelo excesso, como ocorre com as câmeras subjetivas e as lentes “olho de peixe”, que deformam os cantos dos quadros a fim de retratar a confusão psicológica dos personagens.
É claro que pecadilhos como esses também devem ser creditados à diretora de fotografia Bárbara Alves, que, em contrapartida, merece elogios por criar uma atmosfera opressiva e entristecida através de um filtro cinzento e dessaturado que mostra-se perfeitamente compatível com o estado de espírito dos personagens – e perceba que no momento em que eles se entregam à sua primeira transa o filme ganha uma luz levemente mais quente e quase alaranjada, reforçando o entrosamento que testemunhamos quando aqueles corpos se unem.
Com um roteiro enxuto e cheio de momentos marcantes escrito pelo sempre brilhante Jorge Furtado em parceria com seu filho Pedro (gosto particularmente da cena em que João prova realmente ser invisível aos olhos da mãe), Boa Sorte extrai sua força de personagens complexos e bem desenvolvidos cujo envolvimento jamais deixa de ser palpável aos olhos do espectador – e o fato de o longa se passar em um hospital psiquiátrico é um mero detalhe.
Boa Sorte (Idem, Brasil, 2014). Dirigido por Carolina Jabor. Escrito por Jorge Furtado e Pedro Furtado. Com Deborah Secco, João Pedro Zappa, Cássia Kis Magro, Felipe Camargo, Fernanda Montenegro, Gisele Fróes, Fabrício Belsoff, Edmilson Barros, Pablo Sanábio e Amanda Veras.