COMO SERIA UM MUNDO ONDE NINGUÉM MENTE?
“A Invenção da Mentira” começa bem, explorando a premissa absurda de um jeito divertido. Na realidade do filme, ninguém esconde o que está pensando. A franqueza ímpar de uma sociedade incapaz sequer de usar um eufemismo se estende a todos os círculos: o garçom confessa que tomou um gole da bebida da cliente gostosa, o funcionário explica que não foi trabalhar porque não suporta a cara do chefe. Até a publicidade utiliza slogans como: “Pepsi – para quando eles não servem Coca-Cola”.
O protagonista é Mark Bellison (vivido pelo mesmo Ricky Gervais que escreveu e dirigiu), roteirista de um estúdio de cinema. Como o conceito de ficção não existe – afinal, atuar e criar histórias são formas de mentir –, todos os filmes consistem em uma pessoa sentada narrando um episódio histórico bem específico, tipo “A Invenção do Garfo” ou “Napoleão em 1812”. (Por que eles não filmam documentários, entrevistas e reality shows, é um mistério que o roteiro passa por cima sem responder.)
A grande virada da trama acontece quando Bellison torna-se o primeiro ser humano da História a conseguir contar uma mentira. De um zé-mané desempregado e sozinho, ele passa a ter os poderes de um deus, simplesmente porque vive num mundo onde ninguém contesta o que é dito. Exatamente o inverso com o que ocorria com “O Mentiroso” de Jim Carrey, que era o único a dizer somente a verdade no nosso mundão de pinóquios.
Me dá uma raiva danada quando uma idéia boa é desenvolvida de forma porca. “A Invenção da Mentira” vinha caminhando bem até essa hora e tinha tudo pra ficar excelente. O que acontece é justamente o contrário: ele se afunda num roteiro burocrático, uma direção preguiçosa e personagens chatíssimos. Não dá pra ter empatia com um protagonista que convence uma gostosona a ir pra cama “porque senão o mundo vai acabar”, vai com ela até o motel e desiste porque se sente “culpado demais”. Um sujeito cujos amigos acreditam quando ele diz que é o inventor da bicicleta e que prefere usar todo o poder que tem nas mãos… pra conseguir de volta seu empreguinho vagabundo. Ora, se ele disesse “sou o Imperador do Universo, curvem-se aos meus pés, seres imundos”, todos obedeceriam.
Mas Mark Bellison não consegue nem ao menos pegar a Jennifer Garner, seu sonho de consumo durante o filme inteiro, e permite até que ela marque casamento com seu maior rival. Dá preguiça ver o cara suplicar: “por favor, não casa com ele não, por favor!”, quando poderia falar “ele tem uma doença terrível e você vai derreter se encostar a boca nele” que ela iria engolir. É tudo moralista demais, politicamente correto demais. Para um filme que tenta ser ousado e fazer uma sátira à religião, parece que foi escrito por freiras.
A direção é toda no piloto automático. Sabe aquela seqüência que toda comédia tem, com uma música de fundo e várias ceninhas se sucedendo? Aqui, esse recurso é usado nada menos que TRÊS vezes. E a primeira já incomoda: o personagem diz uma mentirinha no ouvido de vários coadjuvantes e a vida deles muda instantaneamente, casais reatam, depressivos se alegram, mas tudo sem som. Eu queria mesmo era ver o que ele falou, pô. Sem falar no melodrama que permeia o filme todo. Pra quê?
“A Invenção da Mentira” poderia ter sido um filmaço nas mãos de um roteirista com mais imaginação. Um mundo sem mentiras teria UM ZILHÃO de mudanças radicais ao longo da História, a começar por todos os ismos (nazismo, comunismo, etc), religião, política e todo o resto. Mas eles pareceram simplesmente retirar a mentira do dia-a-dia norte-americano do século 21 e ignorar solenemente o que veio antes. Um exemplo simples: se nesse mundo não existe Igreja, por que eles continuam dividindo os anos em antes e depois de Cristo?
Não: preferiram gastar o tempo com longos diálogos enfadonhos, falas que se repetem o tempo todo e uma historinha de amor a quem ninguém dá a mínima, numa tentativa de criar um filme com “mensagem” que termina com a desagradável sensação de ter jogado no lixo uma boa idéia.
São 2 caipirinhas, daquelas com adoçante. Blé.
The Invention of Lying, EUA, 2009
Direção de Ricky Gervais e Matthew Robinson