O TERCEIRO DIA DO CINEMA DE BUTECO no Rio de Janeiro ganhou a clássica “cara de festival” – assim sendo, a pseudo-crônica contemplativa cede seu espaço para a exclusividade dos filmes, que desta vez ocuparam todo o dia.
5. Assim que Abro Meus Olhos ★★★★★
(À peine j’ouvre les yeux, França, Tunísia, Bélgica, 2015)
Os dezoito anos de um ser humano são extremamente simbólicos – o momento que eles sedimentam vai muito além de certas permissividades ganhas com o alcance da classificada maioridade. Reside nesta etapa da vida, culturalmente, um estágio de encantamento, experimento e risco sem preconceitos, conhecimento passional das próprias convicções e vivência intensa da cultura, das relações pessoais e experiências emocionais. Não surpreende, destarte, que hajam tantas pressões exteriores sobre o indivíduo que atravessa esta fase: o alcance das expectativas da família, do mercado, das convenções sociais, das obrigações estudantis, o julgamento das preferências e tantas outras foram as responsáveis por desenvolver uma geração que teme falar abertamente com seus pais – afinal, mesmo do meio mais próximo e convidativo, o familiar, espera-se apenas mais pressão e julgamento -, agravando um preocupante cenário de embate geracional praticamente irreconciliável.
Farah (Baya Medhaffer) é uma tunisiana que passa precisamente pela supracitada fase. Descomedidamente imersa nos envolvimentos emocionais mais concretos que já teve e firmemente engajada em preocupações sociais da realidade que a cerca, a garota encontra na música a maneira de expressão honesta de seus sentimentos, angústias e anseios, sejam de caráter pessoal ou reflexivo – o pulsante fascínio pelo namorado, as desigualdades e opressões de seu país (especialmente às jovens mulheres), a cominação de sua mãe em fazê-la atingir metas que não deseja, como cursar medicina. Enquanto sente-se determinada e envolvida naquilo que realmente permeia seus desejos, é sujeitada frequentemente ao “eu me acostumei” que lhe transmite a noção de que logo suas inquietações sociais serão caladas, ou ao “para evitarmos aborrecimentos” que impõe à banda da qual faz parte restrições artísticas para que possam alcançar determinadas pretensões de “sucesso”.
Levanta, portanto, uma das reflexões mais pertinentes no tocante da perspectiva atual: as formas de censura deixaram de partir necessariamente de um regime autoritário de poder público, assim obtendo forças de disseminação mais implícitas – perigosamente silenciosas, por conseguinte – e impregnadas às noções gerais estabelecidas. Impostas por meio do imperativo financeiro, dos arbitramentos sociais, das morais familiares e religiosas – tudo aquilo que recai sobre os ombros de Farah, dilacerando silenciosa e progressivamente sua individualidade, subjetividade e senso de expressão de modo a escravizá-la às normatividades “coletivas” – em “Educação Após Auschwitz”, Theodor Adorno fundamenta isto com muito mais contundência.
Enxerga, personificando na protagonista, a arte e manifestação cultural como única maneira de afugentar tais obstinados e constantemente renovados meios de censura, inibição e opressão: devemos sempre resistir, nos opor a toda e qualquer iniciativa que perpetue, no plano público, em instituições privadas ou em nossa esfera de relações pessoais, normas de redução dos direitos e liberdades. Nós, enquanto brasileiros, estamos distantes do ideal, mas é justamente esta experiência de contato com outra realidade que nos mostra que há muito mais a retroceder, a temer, se nos mantivermos calados, se nos submetermos à cultura servente ao poder, ao silenciamento progressivo de nossas convicções, aos ritos de consumo que nos alterem pelo dinheiro, à retirada de direitos. Um discurso carregado que parece catalisar aquela que talvez seja a mensagem fundamental deste Festival do Rio. Cultura é luta, cinema é luta. Calá-los seria trágico.
“Na primeira noite eles se aproximam
E roubam uma flor
Do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
Pisam as flores,
Matam nosso cão,
E não dizemos nada.
Até que um dia,
O mais frágil deles
Entra sozinho em nossa casa,
Rouba-nos a luz, e,
Conhecendo nosso medo,
Arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
– Eduardo Alves da Costa
6. Manchester à Beira-Mar ★★★★
(Manchester by the sea, EUA, 2016)
Será que Casey Affleck possui uma grande base de admiradores? Pois é difícil acreditar que alguém além de seus fãs incondicionais esperasse uma performance tão admirável quanto a que ele entrega com seu Lee Chandler neste drama estadunidense. Não que o irmão do atual Batman não seja talentoso; apenas era improvável que ele fosse capaz de carregar uma produção tão interessante, sensível e madura.
Trata-se de um arco dramático clássico – um homem solitário, à altura de seus trinta e tantos, acompanhado por arrependimentos que o impedem de seguir em frente – aliado a um conflito igualmente tradicional – a chegada de uma responsabilidade inesperada (o sobrinho Patrick, papel do carismático Lucas Hedges) que o obriga a, enfim, mover-se adiante -, e o resultado é que isto surpreendentemente não empalidece a obra. Mérito da decisão do diretor e roteirista, Kenneth Lonergan, em voltar suas atenções não à composição de uma sequência de dramas e desencontros, mas a um estudo autêntico de seu protagonista – e, graças a isto, chegamos a Affleck.
Desde o primeiro ato, desenhando sua rotina como um conglomerado repetitivo e indiferente de eventos – as sequências da lixeira são simbólicas deste aspecto – em contraste com uma personalidade desequilibrada, instável e completamente inadequada às “normas tradicionais de convívio” – é natural aos comportamentos de Lee dispensar um bom dia ou um fingimento simpático, afastar possibilidades de conversa fiada e, bem, cometer agressões a qualquer um que lhe incomode minimamente -, nos deparamos diante de um personagem tão instigante quanto inusitadamente divertido. A fragilidade na voz e o conformismo no olhar de seu intérprete revelam a herança de um passado trágico por trás de toda aquela dureza e indiferença.
O acerto, consecutivamente, se dará com a opção por entender este drama passado sob o viés da relação entre ele e o sobrinho recém-órfão; embora trate-se de um recurso convencional no âmbito do resgate do obscuro passado, a interação ali existente recoloca Lee diante do que havia “deixado para trás” de uma maneira que carrega consigo notável naturalidade, tornando-se absolutamente envolvente por dispensar maniqueísmos exagerados – exceção feita à trilha sonora, algumas vezes abusiva -, combinando a melancolia acentuada pela fotografia de Manchester – chuvosa, portuária e naturalmente insaturada – com uma série de episódios leves, espontâneos e deliciosamente reveladores de um contexto triste em contato, perduração e confronto.
7. Intolerância.Doc ★★★
(idem, Brasil, 2016)
O trabalho realizado pela equipe deste documentário possui um caráter essencialmente jornalístico: trata-se de pesquisa profunda e fundamentada, levantamento de dados documentais e entrevistas, a respeito de um tema contundente e absolutamente importante no contexto da realidade atual.
E isto é preocupante: quando a tarefa a ser cumprida pelo jornalismo investigativo é repassada à produção de documentários, aos quais deveria caber a possibilidade de abordar os temas com outra construção, abordagem ou maior profundidade, temos a evidência de uma involução, ou seja, um sinal claro de o primeiro não está sendo capaz de cumprir factualmente suas funções. Digo isto tendo em vista a percepção da falta de pluralidade em Intolerância.Doc, uma vez que este atém-se, no recorte de cada vertente escolhida dos crimes de ódio, a casos principais, mais notórios e que deveriam ser destrinchados, vejam só, por reportagens dos veículos da imprensa – o documentário deveria ter a possibilidade de, com maior liberdade criativa, ir além, dar voz a casos e pautas negligenciadas, com maior proximidade humana e abrangência de relatos.
A verdade é que Intolerância.Doc é, sim, um título indispensável, fundamental na atualidade, relatando o quão importante é a assimilação da existência de uma epidemia recente de ódio, preconceito e violência oriunda destes, bem como a imprescindibilidade da existência de um órgão público que atenda e defenda os grupos de minorias e “diferenças” normalmente mais vitimados pelas práticas intolerantemente violentas, além da essencialidade da denúncia de tais crimes – afirmar tudo isto, no entanto, é sintomático de um contexto: deveria ser tangencial.
Nota: esta exibição foi apresentada pela diretora e equipe do filme.
8. Xale ★★
(idem, Brasil, Armênia, 2016)
Confessadamente sem muito a dizer de modo específico sobre o filme, prefiro me apropriar do precedente que ele abre, enquanto integrante da mostra “Novos rumos” deste Festival do Rio, para provocar uma discussão: a utilização da subjetividade, do recurso do relato pessoal, parece de fato estar em um fluxo sutilmente crescente não apenas na esfera cinematográfica, como em toda a produção audiovisual brasileira. O aspecto que isto revela se dá em consequência de uma descrença generalizada nas formas tradicionais de exposição, hoje ligadas às grandes produtoras ou organizações? O relato pessoal, por seu caráter subjetivo, carrega maior credibilidade? A mescla entre o documental e a ficção tornou-se uma alternativa em decorrência da desconfiança coletiva na concepção de exposição da realidade carregada pelas imagens? São indagações a serem feitas numa análise dos movimentos culturais, midiáticos e comunicativos do país – entre eles este, talvez ainda imperceptível, porém predisposto a ganhar impulsão nos próximos anos.
Espero, contudo, que o uso da subjetividade como lente narrativa ainda seja feito considerando um melhor entendimento da principal lição deixada por Roland Barthes em “Câmara Clara”.
Nota: esta exibição foi apresentada pelo diretor e equipe do filme.
Não deixe de nos acompanhar no Twitter e no Instagram para ter acesso às impressões imediatas do Festival.
Até amanhã.