TENHO ME EMPENHADO EM CORRIGIR uma grande falha de formação, que é ter visto pouca coisa do Chaplin. Semana passada assisti quatro curtas do início de sua carreira: O Balneário, O Imigrante, Rua da Paz e O Aventureiro. Todos de 1916 ou 17, todos com duração de 25 minutos e todos muito bons. Esta semana foi a vez de um longa, Em Busca do Ouro (“The Gold Rush”, 1925). Peguei uma cópia antiga em VHS, limpei o cabeçote do vídeo-cassete (usando a técnica de avançar e retroceder uma fita várias vezes, tão prosaica e funcional quanto soprar um cartucho de Super Nintendo) e assisti aos setenta e poucos minutos das aventuras de Carlitos na solidão branca do Alasca.
A primeira impressão não me saltou aos olhos, mas aos ouvidos: estranhei a trilha sonora. Ao contrário dos curtas, que casavam música e imagem de forma sincronizada, quase videoclíptica, a dramática trilha de Em Busca do Ouro, com seus órgãos e acordes tristes, funcionava razoavelmente para umas cenas e fracassava em outras. Sem falar nos momentos quase constrangedores em que a música terminava antes da cena acabar, ou seguia contínua entre um take e outro que não tinham nada a ver. Qualquer um que já editou um vídeo caseiro no Movie Maker sabe que a música de fundo pode mudar o sentido da cena, e em certas horas me vi obrigado a colocar a TV no mudo pra aproveitar melhor o filme. A coisa se torna ainda mais estranha quando se descobre que a trilha foi indicada ao Oscar – quase vinte anos depois!
O mistério tem sua explicação. O longa lançado em 1925 era completamente mudo (como eram todos feitos antes de 1927), e só ganhou trilha em 1942, para um relançamento nos cinemas. Foi essa trilha que concorreu ao Oscar em 43 (e perdeu para a de A Estranha Passageira), e é essa versão recauchutada do filme que está nos DVDs de hoje em dia. A versão calada de 1925, por sua vez, teve os direitos expirados e agora é de domínio público, e cada um distribui e coloca a trilha do jeito que bem entender. Ou seja, quem quiser lançar o filme com trilha do Cauby Peixoto ou do Wando só precisa de cara-de-pau e da autorização dos compositores.
Em Busca do Ouro, como muitos outros, traz Charles Chaplin no papel do Vagabundo, ou Carlitos, como ficou conhecido por aqui O cenário é o Alasca durante a Corrida do Ouro, e nosso herói está perdido e esfomeado. (Qualquer semelhança com Na Natureza Selvagem é mera coincidência, porque este último é baseado numa história real.) Logo no início, o solitário explorador encontra uma cabana, conhece uma galerinha irada e apronta altas confusões tentando não morrer de inanição.
A genialidade e o perfeccionismo chaplinianos são responsáveis por momentos antológicos ao longo do longa. A cena de Carlitos e Big Jim degustando uma bota no jantar, com direito a cadarço enrolado no garfo como se fosse macarrão, precisou de 63 takes e três dias pra ser feita. A bota era feita de alcaçuz (tá achando que o cara vai comer couro 63 vezes?), e, claro, Chaplin foi parar no hospital por excesso de açúcar no sangue. Outra cena clássica, a da dança dos pãezinhos, fez tanto sucesso na época que em algumas exibições eles paravam a projeção no meio e reprisavam o trecho a pedido da platéia, como aconteceu na estréia do filme em Berlim.
Conselho final: quando for assistir, não faça como eu e arranje uma cópia decente. Ou então desligue o som e ponha no fone de ouvido o artista de sua preferência. O último que tentou fazer isso juntou Pink Floyd com o Mágico de Oz. Vai que dá certo com o Wando?
Também publicado no Biselho.