NAS INÚMERAS ENTREVISTAS QUE DEU AO LONGO DO PROCESSO DE CRIAÇÃO E EXIBIÇÃO DO FILME, o diretor disse que, durante sua extensa pesquisa histórica sobre a cultura e a sociedade russa da época, descobriu que havia uma crise de identidade no país, uma espécie de “epidemia” – a alta sociedade emulava-se completamente na sociedade francesa; vestia-se igual, falava-se igual, agia-se igual. Baseado nessa superficialidade da elite, na vida de aparências e de falta de personalidade – bem como na essência trágica e dramática da história –, Joe Wright construiu seu próprio mundo para contar a tragédia de Liev Tolstói, nada mais nada menos que em um teatro antigo. Sarah Greenwood, diretora de arte e companheira de trabalho desde Orgulho e Preconceito, ficou encarregada da difícil missão de adaptar o teatro para que a história fosse (quase) toda contada em seu interior, misturando cenário cinematográfico a uma peça e suas maquinarias. O resultado é incrível e dá muita liberdade a Wright que, para produzir as cenas em que os personagens estão nas ruas de Moscou e São Petersburgo, faz um comboio que só esse tipo de filme permite: gente dançando, cantando, tocando sanfona, andando de monociclo, engraxando sapatos, passando pelos bastidores e pelo palco do teatro como se fossem asfalto e passeio. Cortinas e paredes sobem e descem formando novos cenários e ambientes, portas se abrem para lagos congelados e campos cobertos de neve…
Estamos na Rússia Imperial de 1874. Começa a nascer a revolta contra o capitalismo, a massa está se aquecendo e formando o pensamento comunista, mas tudo está só no início, na Rússia pré-industrial. Já na primeira cena de Anna Karênina, aparece Oblonsky (Matthew Macfadyen) na “barbeação” mais lírica que o cinema já viu. Começa uma montagem: sua esposa, Dolly (Kelly Macdonald), leva as crianças para passear. Oblonsky sai da casa de sua governanta às escondidas e, ao chegar em casa, vê que a esposa recebeu um bilhete mostrando a sua traição. Entende-se que Oblonsky escreveu uma carta para sua irmã, Anna Karênina (Keira Knightley), contando tudo. Anna lê o papel enquanto é vestida por sua criada em um muito complicado vestido cheio de camadas, anáguas, corpete, saias e a que mais tiver direito. Ela decide aceitar o pedido do irmão de viajar a Moscou para convencer a cunhada a perdoá-lo e vai até o escritório do marido para avisá-lo.
Karênin, o esposo de Anna, é um Jude Law careca (mais ainda), com aparência austera e bondosa, voz grave e macia, muito religioso (suas vestes parecem as de um padre). É um político respeitável e muito ocupado, o que acaba afastando-o do filho. O homem é tido como um santo pela alta sociedade, defensor da moral e dos bons costumes. Antes do sexo, tira de seu armário uma caixinha de vidro que contém o que parece ser uma espécie de camisinha. A vida desse casal é de respeito mútuo, mas não se vê faísca alguma de paixão ou amor – há somente puritanismo e deveres matrimoniais a serem cumpridos.
Anna é uma mulher, à primeira vista, devotada ao casamento e ao filho. Nota-se que ela mima o menino. Ao chegar à capital russa, conhece o oficial, Conde Vronsky (Aaron Taylor-Johnson) na estação. Os dois ficam atraídos pela beleza um do outro, notavelmente, e tudo acontece muito rápido. Ela o reencontra num baile e ao dançarem juntos vira, automaticamente, alvo de comentários de toda a sociedade moscovita. Daí para frente, os dois se envolvem numa relação doentia e descem ladeira abaixo. Se hoje o adultério – que foi descriminalizado – sofre sanção social, imagine no século XIX. E imagine ser a mulher nessa história. É claro que ela paga o pato muito mais que Vronsky. Não que eu me simpatize por traições, mas muito me indigna que a mulher seja sempre a suja; e o homem, não, por ter o subterfúgio da “natureza masculina viril”.
A história de amor – que está mais para paixão – dos dois é, em uma certa medida, uma das metades da história: como no livro, o enredo é contrabalanceado pelo romance de Kitty (Alicia Vikander) e Levin (Domhnall Gleeson). Este último é, como os fãs de Tolstói sabem, seu alterego. Aristocrata, porém preocupado com as condições de trabalho, desdenhador da vida fútil em Moscou – “Babilônia”, em suas palavras – e da vida da cidade grande, Levin é um jovem íntegro e romântico, alucinado pela Princesa Kitty, mas rejeitado por ela inicialmente, já que a garota é apaixonada por Vronsky. Ele e Oblonsky são como irmãos e têm personalidades tão diferentes que, de algum modo, se dão muito bem. Aliás, os dois são meus personagens favoritos. Gleeson está excelente como o romântico convicto, e Macfadyen mostra sua veia teatral – ele é um ator basicamente de teatro e muito famoso na Inglaterra – e livre da imagem do galã Sr. Darcy de Orgulho e Preconceito. Está gordinho, com um bigode monumental e divertidíssimo.
Em contrapartida ao romance doce de Levin e Kitty, Anna e Vronsky têm um amor irriquieto e destruidor. Ela vai se mostrando mimada, egoísta, inconsequente e ingrata. Há quem veja Karênin como o vilão, o homem que, de certo modo, a reprime e impede a liberdade do casal protagonista, mas não é o que eu vi. Karênin é um homem religioso e procura sempre a retidão – como a religião manda –, e, por sua natureza, é obviamente um moralista. É visivelmente apaixonado por Anna, e apesar de todas as humilhações pelas quais ela o faz passar, a perdoa e é enganado novamente. É um homem que vive de acordo com suas crenças e, infelizmente, casa-se com uma pessoa que não gosta dele da mesma maneira como ela, dele. Aliás, como marido traído, Jude Law está ótimo. A maquiagem ajuda muito a dar um ar de sabedoria pela falta de cabelo e pele envelhecida. E sou suspeita para falar de Keira Knightley. Apesar dos muitos bicos, caras e bocas que ela faz, não adianta, eu sou fã dela. Sou mais fã ainda da Keira Knightley dirigida por Joe Wright. Suas melhores atuações até hoje foram extraídas dele, e não é à toa, que o diretor a tomou como musa inspiradora.
Os atores tiveram treinamento com coreógrafos para utilizar a linguagem corporal e até a dança no desenvolvimento dos personagens e em cenas do filme. Por esse motivo, muitas vezes, o filme mistura-se a um balé ou até mesmo a uma opereta. A cena de sexo entre Vronsky e Anna é maravilhosa: é uma coreografia em que os dois corpos se entrelaçam, se contorcem e giram juntos. É como nada que já vi antes, e é tão sensual que chega a ser mais quente que cenas com atores nus imitando a realidade. Wright, grande fã de longas tomadas, produz cenas magníficas como a de Levin e Oblonsky conversando sobre amor e traição ou quando Anna e Vronsky dançam no baile enquanto as outras pessoas estão “congeladas” e começam a se mexer à medida que o casal rodopia pelo salão. A fotografia é divina, mesclando imagens bucólicas e turvas com cada detalhe do cenário à vivacidade das cores dos figurinos. As roupas foram baseadas em coleções de alta costura das grifes Balenciaga e Chanel dos anos 50 que, misturadas à moda francesa da época, deram um toque peculiar e autêntico. As cores das roupas são pura semiótica – Anna usa cores fortes enquanto as outras pessoas da sociedade usam tons pastéis e variações de brancos.
Sim, a crítica internacional não foi muito generosa com a produção, mas há de se considerar que é um filme experimental e único, e que apesar de utilizar de uma história secular e de um cenário decadente, se mostra extremamente vanguardista. Joe Wright, a cada novo filme, se prova mais ousado e corajoso. Em cada novo trabalho modifica a estrutura dramática, a abordagem das personagens, a interpretação do enredo, o ritmo da narrativa, o uso da técnica nos setores artísticos e cenográficos. Há boatos de que ele deva fazer uma nova adaptação do conto “A Pequena Sereia” de Hans Christian Andersen e que até faça um filme sobre a vida do ilusionista Houdini. Posso dizer que mal posso esperar para que esses rumores se confirmem. Que ele traga mais graça e culhões ao cinema em tempos de uma indústria padronizada, medrosa e repetitiva.
Título original: Anna Karenina
Direção: Joe Wright
Produção: Tim Bevan, Paul Webster, Alexandra Ferguson e Alexander Dostal
Roteiro: Tom Stoppard
Elenco: Keira Knightley, Aaron Taylor-Johnson, Jude Law, Domhnall Gleeson, Matthew Macfadyen, Alicia Vikander e Kelly Macdonald
Lançamento: 2013 (Brasil)
Nota:[quatroemeia]