EM UM ANTIGO EPISÓDIO DE OS SIMPSONS, os personagens assistem ao falso trailer de um filme da Dreamworks chamado Cartas, que ocorre em um mundo de baralhos. No curto vídeo, são ironizados alguns clichês do estúdio (e das animações americanas em geral), como o uso de trocadilhos infames, as referências gratuitas a outros longas, o conflito familiar e as histórias de superação. No caso da fictícia produção, por exemplo, o filho, uma carta três, quer ser um sete, o que é visto por seu pai como loucura.
Infelizmente a fórmula continua se repetindo: escolhe-se uma ambientação (um zoológico, corridas de carro, o Rio de Janeiro), personagens que devem superar seus medos e a desconfiança de terceiros, acrescenta-se a isso seres engraçadinhos e várias lições, e pronto; temos um filme. Obviamente a Dreamworks não é a criadora dessa estrutura, que remonta a produções da Disney, mas ninguém a abraça de forma tão escancarada hoje. Contudo, Os Croods não é um desastre completo como outras produções do estúdio de Spielberg, mas está longe de atingir resultados como os da Pixar em seus melhores (quase todos) momentos.
Em um mundo pré-histórico, os Croods vivem sob um rigoroso código de conduta, estabelecido pelo pai Grug para garantir a sobrevivência da família. Com o lema de nunca se arriscar, ele acaba entrando em conflito com sua filha Eep, que está cansada da vida monótona e rotineira. Quando ela conhece Guy, um jovem inteligente e criativo, esse a avisa que o mundo está mudando, o que força a família a sair de sua zona de conforto em busca de segurança, o que incomodará o patriarca profundamente.
Aposto um caminhão de caipirinha que você, leitor esperto do Buteco, já percebeu o que acontecerá até o final do filme. Mas vamos lá.
Perceba, Grug não está errado em ser super protetor; como demonstra claramente a introdução inicial em 2D (que tem se tornado comum, por algum motivo), o mundo em que os personagens vivem pode ser extremamente perigoso, o que aliás levou à morte as outras famílias da região. O pai só quer o melhor para os seus, e conseguiu isso seguindo regras claras que impedem aventuras. Quando precisa utilizar algo além da força bruta, que é a especialidade dos Croods, ele vê o seu lugar de macho-alfa sendo perdido para Guy, que claramente tem um interesse especial em sua filha.
Não há espaço para sutilezas na produção; se o perigo que o grupo percebe nas novidades é marcado em sangue nas paredes da caverna onde vivem, em uma bela simbologia, todo o resto é pontuado por inúmeros diálogos expositivos, que explicam as várias (e óbvias) lições de moral do longa. Se prepare para uma verdadeira enxurrada de trechos saídos de uma obra de autoajuda martelando na sua cabeça. Por estranho que pareça, como o filme não tem medo de abraçar praticamente todos os clichês possíveis, como o uso de personagens engraçadinhos, uma montagem irritante, filho estúpido, sogra importuna, além de infinitas cenas de queda (sério, o filme deveria se chamar “Tropeços na Idade da Pedra”), esse se torna um problema menor.
O que impede a produção de se tornar enfadonha é o carisma de seus personagens e o visual arrebatador. Se tecnicamente ainda fica claro o abismo que existe entre a Pixar e os outros estúdios, principalmente em cenas envolvendo fluídos como água, o design da produção é inteligentíssimo ao se afastar do realismo. Sem amarras, os animadores puderam desenvolver criaturas fantásticas, que mesclam características de vários animais, criando seres críveis, embora absurdos. No mundo colorido de Os Croods tudo parece perfeitamente adaptado ao seu ambiente (em uma aula sobre Darwin). A própria família principal é muito bem trabalhada, com sua postura que remete a primatas, seus grandes membros desproporcionais, e mesmo a veia que salta do pescoço de Grug em um momento de fúria. Só o 3D que fica mesmo devendo, sendo pouco explorado (exceto em uma cena que envolve pó).
Com um ótimo ritmo até o terceiro ato, que se torna extremamente arrastado, Os Croods consegue divertir ligeiramente. A verdade é que se a produção não é constrangedora, se torna quase dispensável, uma vez que suas premissas já foram trabalhadas a exaustão em filmes bem melhores. Esteja feliz, contudo, bravo leitor, pelos menos se trata de um conteúdo original (embora requentado) e não a trigésima continuação de um Shrek ou de um Madagascar. Isso é, até a inevitável sequência, caso o filme faça sucesso.
Nota:[tres ]