Há alguns dias atrás ouvi um podcast onde o ator e roteirista Paulo Vieira falava sobre como seus projetos são muito pessoais, um deles por exemplo era um programa de humor inspirado em sua família, seu pai então reclamou da ausência do personagem do pai no programa, o fato é que ele fora um pai ausente durante a infância de Paulo, mas pensando em fazer as pazes com o presente, Paulo buscou a essência da personalidade de seu pai real e “recriou” suas memórias, transformando o personagem em alguém mais parecido com quem ele foi/é.
Acho que a diretora e roteirista escocesa Charlotte Wells faz mais ou menos isso com Aftersun (Depois do Sol em tradução livre), sua estreia no cinema, um filme pessoal sobre suas memórias em uma viagem de férias com seu pai na Turquia, quando ela tinha por volta de 11 anos e ele 31.
Mais do que recriar o personagem do pai, a diretora mergulha na incerteza das lembranças para tentar entendê-lo melhor, ela constrói um filme sobre memórias, e faz isso de uma maneira esteticamente interessante, através de frames de vídeos VHS (a história se passa nos anos 90) e enquadramentos que não focam nos atores.
Paul Mescal interpreta o pai, um cara jovem, bonito e melancólico, que carrega dentro de si um monte de sentimentos, mas que se expressa discretamente através de alguns diálogos pouco reveladores e movimentos corporais, em sua maior parte, movimentos dançantes, um corpo jovem querendo se soltar, mas que aparentemente está preso dentro de um adulto com grandes responsabilidades.
Talvez o pai de Paul Mescal entre para o time dos grandes pais do cinema, junto com os pais italianos (Ladrões de Bicicletas, O Quarto do Filho, A Vida é Bela, etc.), mas diferente do neorrealismo italiano, Charlotte Wells foge do sentimentalismo, quando um momento começa se tornar dramático a cena é cortada, ou então, no momento com o diálogo mais revelador, a câmera está enquadrada em uma televisão desligada onde só vemos a sombra dos atores. E mesmo assim o filme consegue arrancar lágrimas.
Aftersun é um filme sobre memórias, e como elas vão sendo redesenhadas e reinterpretadas à medida que vamos envelhecendo, é também um filme sobre a solidão paterna, e como o relacionamento entre pais e filhos muda a estrutura sem a presença de uma figura materna. E por fim, como sugerido através de uso belíssimo da música Under Pressure do Queen, sobre adultos vivendo sob pressão.
O filme está em cartaz na programação da 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e estreia em breve no streaming através do Mubi.